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O Tribunal Penal Internacional e o caso venezuelano

Coautora Margarita López Maya

O dia 3 de novembro, o Procurador Chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) com sede em Haia, Karim Khan, anunciou a abertura da investigação formal de crimes contra a humanidade na Venezuela. Esta decisão histórica é a primeira na América Latina e vem depois que Khan concluiu o exame preliminar após uma visita de três dias ao país. Como a Venezuela é signatária do Estatuto de Roma que reconhece a autoridade do TPI, este anúncio foi acompanhado por um memorando de entendimento assinado por Khan e pelo presidente venezuelano Nicolás Maduro, no qual, sob o princípio da complementaridade, o governo se compromete a facilitar a investigação mesmo que expresse seu desacordo com esta decisão.

A abertura formal da investigação confirma os relatórios emitidos pela OEA, pela Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos e pela Missão Internacional Independente de Averiguação sobre a violação sistemática dos direitos humanos por parte do Estado venezuelano. Criado em 1998 pelo Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional entrou em vigor em 2002. Desde então, o tribunal abriu processos contra antigos líderes como Laurent Gbagbo da Costa do Marfim e Omar al-Bashir do Sudão.

Em particular, entre as quatro classes de crimes de maior importância internacional, os crimes contra a humanidade são aqueles crimes particularmente graves cometidos sistematicamente contra as populações civis para impor políticas de Estado. Eles incluem tortura, detenção arbitrária, desaparecimento forçado, execuções extrajudiciais, entre outros crimes.

Em 2017, desde o exílio, a promotora venezuelana demitida por Maduro, Luisa Ortega Díaz, e o Grupo Lima foram para ao TPI por causa da cooptação institucional do sistema de justiça venezuelano. Por sua vez, vítimas e ONGs também assistiram e reuniram provas sólidas sobre as múltiplas execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias e torturas que permitiram a abertura de um processo criminal internacional em fevereiro de 2018. Desta forma, o promotor Khan culmina uma primeira fase iniciada pelo promotor anterior Fatou Bonsouda, que foi responsável pelo exame preliminar da Venezuela por crimes estatais cometidos pelo menos desde abril de 2017, no âmbito do ciclo de protestos que ocorreu então.

Quais poderiam ser as consequências desta decisão do TPI?

Primeiro, a abertura de uma investigação formal sobre crimes contra a humanidade dá esperança de justiça para as vítimas. Elas serão as principais protagonistas da investigação, onde seus depoimentos serão cruciais. Em segundo lugar, a decisão do TPI abre uma janela de oportunidade para a Venezuela em pelo menos duas dimensões: uma dimensão de direitos humanos e uma dimensão mais política.

Em relação à primeira, se o governo quiser evitar uma condenação, precisará tomar medidas substanciais que vão além das modificações cosméticas com as quais tentou enganar o Ministério Público nos últimos meses. É importante ter em mente que o TPI é governado por um princípio de complementaridade que procura interagir com as jurisdições nacionais.

Nos casos em que é evidente que não há vontade nem circunstâncias para processar crimes dentro de cada país, o TPI avança por conta própria com processos criminais e pode eventualmente levar a condenações. É por isso que, por exemplo, em sua viagem à América Latina, Khan decidiu encerrar o caso da Colômbia e prosseguir com a investigação formal na Venezuela. Em contraste com a Venezuela, a Procuradoria concluiu que “há um compromisso do Governo da Colômbia com as jurisdições diferentes, mas interligadas, que compreendem o sistema de justiça comum, o mecanismo de Direito de Justiça e Paz e a Jurisdição Especial para a Paz e, em particular, para salvaguardar o quadro legislativo e as dotações orçamentárias necessárias para sua implementação”.

Maduro teria então que demonstrar, nesta nova fase, a vontade de retificar e fazer reparações que implicariam, por exemplo, o fechamento de centros de detenção clandestinos, a proibição de julgar civis em tribunais militares, o afastamento e o julgamento das autoridades nos órgãos que perpetraram os crimes, incluindo as Forças Armadas, o Corpo de Pesquisas Científicas, Penais e Criminais (CICPC), e os corpos de Inteligência Militar. Da mesma forma, é essencial o fechamento das Forças de Ação Especial (FAES) e uma reforma judicial que, entre outras coisas, garanta um sistema de justiça independente através de competições públicas e não por meio de seleção discricional.

Em relação à dimensão política, a recente decisão do promotor Khan pressiona Maduro, caso ele procure evitar a condenação, a reconhecer crimes durante sua administração que possam abrir fissuras em sua coalizão hegemônica. Dado que no Memorando de Entendimento, o TPI assegura que reconhecerá os esforços do Estado em relação a esses crimes, a determinação de responsabilidades nas cadeias de comando, inclusive nos níveis mais altos, será um fator chave para demonstrar a boa vontade do governo.

Quem Maduro estaria disposto a sacrificar para evitar a acusação e possível condenação pelo TPI? Que altos funcionários civis e militares ele concordaria em processar para evitar sua própria responsabilidade e a de sua comitiva imediata? Este dilema momentâneo, que fragiliza o bloco governante, poderia aumentar os incentivos na mesa de negociações que teve lugar este ano no México e da qual o governo se retirou em protesto contra a extradição de Alex Saab de Cabo Verde para os EUA. Saab, um empresário colombiano intimamente ligado ao governo Maduro e aos negócios de sua família no exterior, foi acusado de lavagem de dinheiro. A decisão do promotor poderia contribuir para o retorno do governo à mesa com maiores incentivos para fazer concessões para a reinstitucionalização democrática.

Não há dúvida de que o regime fará tudo o que for legalmente possível para atrasar a investigação do TPI. Está ciente de que estes processos podem levar anos e estão repletos de obstáculos. Além disso, continua perseguindo as ONGs e testemunhas que estão cooperando. Entretanto, o passo dado pela Procuradoria constitui uma primeira conquista para muitas vítimas venezuelanas que, na ausência de justiça no país, da censura oficial e da campanha mediática internacional que torna os crimes do Estado invisíveis, têm persistido incansavelmente em exigir justiça, o direito à verdade e as devidas garantias de reparação e não repetição.

Em termos regionais, a decisão histórica de abrir a investigação de crimes contra a humanidade na Venezuela é um precedente importante em tempos em que os sistemas democráticos parecem estar em retrocesso. É um aviso contra ambições e práticas autocráticas, que ainda existem mecanismos capazes de fazer justiça, apesar do controle das instituições nacionais. Ela rompe com a impunidade das violações dos direitos humanos na América Latina e no Caribe. Alguns devem estar calculando como se preparar para que isso não aconteça com eles.

Autor

Cientista política. Pesquisadora do Instituto Kellogg de Estudos Internacionais da Univ. de Notre Dame (Indiana, E.U.A.) e do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI/IUL). Doutora pela Univ. de Pittsburgh.

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