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Pandemia e brutalidade policial no Rio de Janeiro

A violência policial é uma constante na América Latina, como resquício dos regimes autoritários e da militarização das polícias. De acordo com um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNDOC), o Brasil tem a segunda maior taxa de homicídios para cada 100 mil habitantes, atrás apenas da Venezuela. Neste cenário, a recente operação na favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro, constitui um exemplo emblemático da brutalidade das forças de segurança.

Em abril de 2020, as mortes em decorrência de ações policiais no estado do Rio de Janeiro aumentaram 43% na comparação com o ano anterior, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). Sob gestão do governador Wilson Witzel, as polícias civil e militar mataram 117 pessoas, quase 6 por dia, fazendo daquele mês o mais letal em ações policiais desde o início da série histórica em 1998, ficando atrás apenas de julho de 2019.

Menos de um ano depois, em 6 de março de 2021, 27 jovens foram mortos durante uma operação da Polícia Civil na favela do Jacarezinho, no que se tornou a operação mais letal na história do Rio de Janeiro. A gestão dessa vez é do governador Cláudio Castro, que havia assumido o cargo menos de duas semanas antes em razão do impeachment de Witzel por corrupção.

Ambos os episódios, embora espaçados em um ano, se unem ao ocorrerem em meio a uma pandemia que, no dia da Operação no Jacarezinho, já havia vitimado mais de 400 mil brasileiros.

Atuação das forças de segurança durante a pandemia

A pandemia autorizou a suspensão de uma série de atividades cotidianas em nome da preservação da vida. Uma liminar do Supremo Tribunal Federal em junho de 2020 limitou as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia a casos “absolutamente excepcionais”. Sendo assim, por que ao invés de dar uma pausa, a violência policial, pelo contrário, se intensificou levando a quase 800 mortes até então?

A resposta certamente não está na “guerra às drogas” que até agora não cansa de evidenciar seu fracasso no objetivo de diminuir o tráfico e o consumo por meio do desmantelamento das redes criminosas e da apreensão de substâncias ilícitas. Muito menos na justificativa moralista de investigar o aliciamento de crianças e adolescentes pelo tráfico de drogas, oferecida pela corporação policial para a chacina do Jacarezinho.

No fim, o que mata, seja em abril de 2020 seja em 06 de maio de 2021, é o racismo. O racismo movimenta a “guerra às drogas” cujo alvo não tem qualquer relação com os objetivos declarados, mas sim com marcadores sociais de raça, gênero, classe e território construídos nos marcos de uma sociedade forjada pela escravidão.

Foto de Deo Araujo en Foter.com

O poder de matar da polícia não foi suspenso durante a pandemia justamente porque este poder é produzido cotidianamente como uma atividade essencial do Estado. E assim como o Estado definiu como suas atividades essenciais a abertura dos mercados e das farmácias, ele também continuou definindo a “guerra às drogas” como sua atividade essencial. Pois é por meio dela que o Estado continua cumprindo sua função mais essencial, a de discriminar quem deve viver e quem deve morrer e de demarcar de forma performática, ruidosa e sangrenta a distribuição desigual do valor das vidas.

É por meio da “guerra às drogas” que o Estado continua demarcando qual é a “carne mais barata do mercado” como denuncia a música “A Carne” na voz de Elza Soares.

Se por um lado, o governo Witzel convocava a população do Rio a se unir em torno da guerra contra o vírus da Covid-19, por outro lado, este mesmo Estado cindia a sociedade em combatentes e inimigos de uma outra guerra, aquela contra as drogas. Nesta última, o Estado era autorizado pelo governador a mirar na “cabecinha” de um segmento específico da população que habita as favelas e periferias da cidade.

Esse segmento encontrava-se num fogo cruzado, vitimado por duas “guerras”, uma na qual era chamado a lutar e cooperar com o Estado para achatar a curva do vírus e outra que lhe era bem mais familiar, onde ele tem sido, desde sempre, o alvo das ações mortíferas do Estado.

A necropolítica estrutural do Estado brasileiro

O que assistimos no dia 06 de maio foi mais um capítulo, o mais letal, deste projeto de necropolítica do Estado que, como nos mostra o autor camaronês Achille Mbembe, está voltado para fazer morrer. A produção da morte não é ocasionada por policiais desviantes, por acidentes de percurso ou por resultados imprevistos, mas por ações sistemáticas e rotineiras do Estado que não podem ser suspensas mesmo em meio à pandemia.

Tanto Witzel como Castro fizeram uma escolha, de não terceirizar o poder de morte para um vírus, que ainda que incida desproporcionalmente sobre segmentos vulnerabilizados da população, mata de forma ampla e descentralizada demais para seus gostos.

Para os segmentos racializados da população brasileira, a normalidade sempre conviveu com a truculência policial e com a lógica da guerra contra seus territórios. As mortes resultantes da ação policial no Jacarezinho dão mostras de que o pacto mais essencial para o Estado é aquele pacto assimétrico que desumaniza parcela significativa da sua população e que vem autorizando a “guerra às drogas”.

Esse pacto é tão entranhado no Estado brasileiro que qualquer iniciativa que vise suspendê-lo, como foi o caso da liminar deferida pelo STF, é burlada e vira objeto de “deboche”. De fato, o nome dado à operação no Jacarezinho, “Exceptis” ou Exceção, foi classificado por uma série de entidades, dentre elas a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o Coletivo Papo Reto, Redes da Maré e Justiça Global, como um “deboche” diante da restrição de operações policiais durante a pandemia, “salvo situações de absoluta excepcionalidade”, colocadas pelo STF.

O recado dado por meio da operação tida como legítima pelos agentes do Estado, policiais, governador e presidente, foi o de que não é a lei que define a normalidade e a exceção em relação aos territórios periféricos, mas a força bruta.

Por meio do emprego da força excessiva e desproporcional ao arrepio do estado de direito, os agentes do Estado, ao mesmo tempo em que zombavam da lei, diziam em alto e perverso tom que ali, no espaço da favela, o estado de exceção é permanente, que ali, ele é a normalidade. O que equivale a dizer que para o Estado existe uma normalidade que não pode ser quarentemada, que não pode dar trégua: a do genocídio de jovens negros, pobres e favelados. 

Foto de André Gustavo Stumpf no Foter.com

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Doctora en Relaciones Internacionales. Profesor y ex directora del Instituto de Relaciones Internacionales (IRI) de la PUC-Rio. Investigadora del CNPq y del proyecto GlobalGrace (Global Gender and Cultures of Equality). Directora del BRICS Policy Centre (2023-2025).

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