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Chile: o fim de um ciclo e o qué está por vir

O resultado contundente do plebiscito realizado no Chile em 25 de outubro de 2020, que consagrou a opção popular por uma nova Constituição a ser elaborada por uma Assembleia Constituinte (Convenção Constitucional) eleita exclusivamente para este fim, carrega diversos simbolismos. Principalmente, encerra um longo período de submissão da sociedade chilena a um quadro legal ilegítimo. Mas, para além do ciclo que termina, é difícil prever o conteúdo do que o substituirá.

Antes de tudo, deve-se reconhecer a ilegitimidade da Constituição de 1980, elaborada pela ditadura militar liderada por Augusto Pinochet no Chile e imposta através de um simulacro de plebiscito. Mais tarde, quando as oposições democráticas aceitaram participar do plebiscito de 1988, e através da campanha pelo No derrotaram nas urnas a alternativa de continuidade de Pinochet, não havia apenas o que comemorar. A participação simbolizou também um reconhecimento tácito das instituições pinochetistas, e consagrou-se a “transição conservadora” que encerrou a ditadura sem levar a uma democracia plena. Com a vitória de 1988, não havia saída para as forças democráticas a não ser negociar com a ditadura – e fazê-lo no campo de jogo escolhido por ela, sob suas regras, com seus árbitros e com sua bola.

Como consequência disso, tornaram-se famosas ao longo dos anos 1990 as análises da ciência política hegemônica que davam conta de uma interminável “transição à democracia” no Chile. De fato, não se tratava de uma transição sem fim, mas da passagem que já havia se completado para uma democracia limitada, de baixíssima intensidade.

Se discutirá por décadas se a saída da ditadura poderia ter sido diferente”

Se discutirá por décadas se a saída da ditadura no Chile poderia ter sido diferente, ou se a Concertación de Partidos por la Democracia (a oposição que venceu a maioria das eleições presidenciais seguintes) poderia ter avançado mais decididamente no caminho das reformas democráticas e sociais e no ajuste de contas com o passado.

De todo modo, tratava-se então de uma sociedade marcada pelo trauma e reorganizada pelo “laboratório neoliberal” inaugurado pela ditadura ainda nos anos 1970. A nova sociedade neoliberal no Chile que emergiu da ditadura foi apresentada internacionalmente como um caso neoliberal de sucesso. A estabilidade política e altas taxas de crescimento econômico não permitiam entrever para a grande maioria dos analistas o que poderia estar ocorrendo nos subterrâneos, os magmas que poderiam estar se movendo.    

Até ocorrer o estallido social de 18 de outubro de 2019. Não se tratou exatamente de um “raio em céu azul”. Já haviam ocorrido nos anos anteriores diversos movimentos de protesto importantes, como o movimento de estudantes secundaristas de 2006 (a “Revolução dos Pinguins”). Mas nada como o estallido social, que ocupou as ruas por meses, fez brotar assembleias cidadãs e barricadas por toda parte (além das centenas de prédios públicos e estações de metrô destruídas) e teve como ponto alto a manifestação de 25 de outubro de 2019, a maior da história do Chile. O inesperado ocorria no país modelo. Nem séculos de ciência política mainstream poderiam prevê-lo.

Para além da violência popular que explodiu em diversos momentos durante a rebelião, não se deve esquecer dos mortos, feridos, violentados e humilhados pelas forças policiais (dos 411 com ferimentos no globo ocular, por exemplo). De todo modo, este autor esteve em Santiago ao longo de todo o período, e pôde constatar, para além de pontuais explosões de raiva, violência e depredação, a esperança, o júbilo e a libertação no olhar de cada manifestante, de cada senhora, de cada jovem presente nos protestos.

Se a explosão havia começado com o aumento dos preços das passagens de metrô, logo emergiram diversas consignas nos protestos, quase tantas quanto os que as integravam. Mas se impuseram rapidamente os clamores por uma nova Constituição, por reformas nos sistemas privados de pensões e pela renúncia do presidente direitista Sebastián Piñera. Igualmente foram marcantes a emergência das questões de igualdade de gênero e da soberania mapuche (com sua bandeira sendo elevada a ícone das manifestações).  

A revolta social sem lideranças foi canalizada para a mudança institucional”

A revolta social sem lideranças foi canalizada para a mudança institucional, num acordo que envolveu a maioria das forças políticas que tentavam entender, conter ou se aproveitar da mobilização. Piñera ficou, ainda que num longo fim de mandato. A reforma das pensões segue sendo discutida. E acordou-se a realização do plebiscito para decidir se haveria constituinte e como ela seria, em lugar de convocá-la de uma vez. Assim, após um ano de incertezas e adiamentos (com a pandemia de Covid-19 tumultuando ainda mais o processo), enfim ocorreu o plebiscito. 78% aprovaram a elaboração da nova Constituição, 79% definiram que seus autores serão assembleístas eleitos apenas com este fim (a outra opção “mista” seria com metade da assembleia composta por atuais congressistas).

Somente um terremoto social para romper com todo o bloqueio institucional e a cristalização política que vinha se arrastando desde 1988, e para colocar em suspenso o modelo neoliberal internacionalmente glorificado. Contabilizados os votos do plebiscito, para onde essa clara opção pela mudança poderá seguir? Ainda faltam algumas questões a serem definidas em relação à Constituinte. Haverá paridade de gênero, quórum de dois terços e um referendo “de saída”.

Mas ainda não se sabe precisamente quando começará, quanto tempo vai durar, e se a elaboração da Carta realmente vai partir do zero (“folha em branco”) ou vai tomar algo da atual Constituição como base. Quanto às ruas, não se sabe se a insatisfação foi definitivamente canalizada para a via institucional. A manutenção da mobilização popular será fundamental para determinar se as transformações irão na direção de mudanças no sistema político acompanhadas de algumas reformas no modelo neoliberal; ou se caminharão para modificações mais estruturais.

O que se sabe é que estamos testemunhando o fim de um ciclo, mas é difícil projetar o que o substituirá. De todo modo, ainda que ao fim e ao cabo todo o potencial contido no estallido social não se realize, ao menos a sociedade chilena terá enfim uma Constituição legítima – o que não é pouco. Mas ainda estão abertas as “grandes alamedas” para a possibilidade de se desenvolver uma democracia de alta intensidade e de se refundar a organização social. Com isso, o Chile se afastaria de duas premissas centrais do neoliberalismo: o autoritarismo e o individualismo.

E assim todo o processo poderia se revestir de uma importância ainda mais transcendental do que já assumiu. Poderia projetar para a América Latina e para o mundo uma mensagem de mais democracia e de mais direitos, em meio a um contexto regional e global do avanço de toda sorte de autoritarismos e de exclusões.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Foto de la ONG Movilh en Foter.com / CC BY-NC-ND

Autor

Professor de Ciência Política da Univ. Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Vice-diretor de Wirapuru, Revista Latinoamericana de Estudo das Idéias. Pós-Doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Univ. de Santiago de Chile.

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