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Terras indígenas e a tese do marco temporal no Brasil

Os critérios para a demarcação de terras indígenas voltaram a ser um assunto importante para o Congresso Nacional Brasileiro nesta segunda metade de 2023. No mês em que se completam trinta e cinco anos da promulgação da nova Constituição Federal do Brasil, o Senado Federal debate a criação de ferramentas legais que legitimem a tese de que os grupos indígenas só podem ter terras demarcadas se já as tivesse ocupando no momento da instalação da nova República brasileira em outubro de 1988.

A chamada tese do marco temporal é bastante controversa. Trata-se de uma ideia que limita cronologicamente o direito de posse dos índios sobre faixas importantes do território brasileiro. No ano de 2003 criou-se, no estado de Santa Catarina, a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ que com cerca de oitenta mil quilômetros quadrados passou a ser ocupada pelos indígenas Xogleng. Diante de demandas de dezenas de agricultores da região, o governo de Santa Catarina acionou o Supremo Tribunal Federal alegando que os novos possuidores daquela terra não estavam ali presentes na data de promulgação da Constituição do Brasil e, portanto, não deveriam ter legalidade sobre o local.

Um parecer jurídico da Advocacia-Geral da União de 2009 cristalizou ainda mais as bases para a tese do marco temporal. Em relação à demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol no norte do país defendeu-se que a mesma só poderia ser delimitada a partir do atendimento deste critério temporal e diante deste impasse a necessidade de um julgamento pela Corte Constitucional do Brasil fez-se necessária haja vista o necessário pronunciamento do Poder Judiciário em assuntos aos quais fora provocado.

O caso do impasse entre indígenas e ruralistas em Santa Catarina teria o condão de influenciar mais de trezentos processos de demarcação de terras em todo o país e a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal tomaria o caráter de repercussão geral. Em 21 de setembro de 2023, vinte anos depois do início deste litígio, a maioria dos ministros da Corte decidiu por derrubar as limitações temporais, garantindo uma vitória aos povos indígenas em todo o país que poderão requerer a posse de seus espaços naturais.

O mais importante para o momento é saber que após apreciação do Legislativo brasileiro o Projeto de Lei 2903 de 2023 segue para sanção presidencial tendo sido aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Ruralistas de todo o país, por meio de frentes parlamentares, pressionaram os seus representantes no sentido de criar uma nova legislação que suste a eficácia da decisão proferida pelo Judiciário em favor dos povos originários.

Em um momento de grande polarização no Congresso, que numericamente ostenta um número majoritário de representantes conservadores, os Poderes da República estão em rota de colisão. Em falas recentes, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, criticou a atuação frequente do Judiciário em questões típicas do Congresso. A matéria aprovada recebeu, não apenas o maciço apoio de grupos ligados ao agronegócio nacional, mas também de setores importantes como os grupos dos evangélicos e da segurança pública.

Juristas no Brasil e no exterior têm sido consultados sobre a capacidade de um Projeto de Lei de anular uma decisão vinculante da mais alta Corte Judicial do país. De um lado estão aqueles que defendem o Judiciário e consideram que o acórdão recentemente proferido garante direitos fundamentais dos povos indígenas e que, por esta razão, fogem da revisão congressual. Em outro extremo estão aqueles que definem a decisão judicial como sendo um excesso às competências garantidas ao Supremo pela Constituição de 1988 e advogam em favor da atuação do Legislativo no reequilíbrio entre os Poderes. O presidente Lula já anunciou que deverá vetar a proposição, considerando-a como inconstitucional. Legisladores de todos os vieses políticos tornam pública a sua pretensão de derrubar o provável veto presidencial.

Frente a interesses tão diversos, representados nas mais importantes esferas políticas do país, a Constituição que comemora mais um ano de vigência passa por um teste de fogo. A complexidade desse cenário busca ser útil na definição clara quais são os limites do equilíbrio de Poder pensado no século XVII pelos pais fundadores da democracia americana, Madison, Hamilton e Jay e aplicada a diversos países da América Latina. A despeito de seus turnos de quebra da ordem democrática, os países da região anseiam por um aperfeiçoamento de seus regimes políticos através de situações que podem asseverar a solidez – ou não – de suas instituições.Terras indígenas e a tese do marco temporal no Brasil

Autor

Professor de Relações Internacionais no IBMEC-BH. Doutor em Ciência Política pela UFMG. Membro da Conferencia Americana de Organismos Electorales Subnacionales por la Transparencia Electoral (CAOESTE).

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