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O autogolpe frustrado na Bolívia

Os acontecimentos políticos na Bolívia vêm sendo muito dinâmicos nas últimas semanas. Desde o dia 20 de outubro, o dia da eleição presidencial, e à luz dos resultados preliminares, foi- se desencadeando um conjunto de interpretações, da parte da oposição e da situação. No mesmo dia, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a União Europeia recomendaram um segundo turno, por perceberem irregularidades no processo eleitoral. O apagão no sistema de Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares (TREP), e a comparação entre os resultados de boca de urna obtidos pela empresa Vía Ciencia e os números oficiais, despertaram muitas dúvidas na oposição. O governo se declarou vencedor no primeiro turno e a principal organização política oposicionista declarou haver obtido sua primeira vitória, que a levaria ao segundo turno.

Com base nas recomendações da OEA e da União Europeia, o governo a contragosto solicitou à OEA, de modo unilateral, uma auditoria. Isso gerou suspeitas na oposição, já que sua opinião não foi levada em conta para tomar essa decisão; também aprofundou o movimento cidadão dos Comitês Cívicos e do Comitê de Defesa da Democracia (Conade), que passaram a exigir não o segundo turno, mas sim a renúncia do presidente.

A oposição política partidária foi mais cautelosa, e suas exigências se limitaram a uma mudança na composição do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) e convocação de novas eleições. Logicamente, o governo não aceitou as demandas nem da oposição partidária e nem muito menos dos Comitês Cívicos.

Em virtude do crescimento dos conflitos, os setores mais “racionais” passaram a pedir ao governo que convocasse imediatamente um diálogo com todos os agentes: Comitês Cívicos, Conade, organizações políticas e plataformas cidadãs, e que além disso convocasse uma terceira instância para mediar o diálogo. O governo, crendo que seria capaz de arrefecer o impulso dos levantes cidadãos, negou também essa possibilidade.

As mobilizações e os confrontos já haviam custado três vidas e mais de uma centena de feridos. Mantendo uma coerência absurda com sua retórica, o governo insistia em esperar pelos resultados da auditoria, que aconteceria em prazo máximo de 13 dias. Nove desses dias já haviam passado e a mobilização diante da sede do governo pedindo a renúncia do presidente era pacífica mas incontrolável.

A OEA determinou com clareza a existência de uma fraude eleitoral e recomendou a anulação das eleições e a realização de uma nova votação”

Por fim chegou o domingo, 10 de novembro, e bem cedo a OEA anunciou os resultados preliminares da auditoria, que reconhecia a existência de irregularidades cometidas de modo sistemático em vários âmbitos do processo eleitoral. Em poucas palavras, a OEA determinou com clareza a existência de uma fraude eleitoral e recomendou a anulação das eleições e a realização de uma nova votação. Rapidamente, então, o presidente Evo Morales, ao se ver exposto e diante das recomendações categóricas, decidiu convocar um diálogo entre o governo e os agentes políticos de oposição que haviam sido parte do processo eleitoral, desconsiderando a representação importante que os Comitês Cívicos, o Conade e a valente Polícia Natal, que estava do lado do povo naquele momento, vieram a assumir.

Ele defendeu a necessidade de anular as eleições e convocar uma nova votação com mudanças no TSE. Mas já era tarde. A grande maioria dos bolivianos se havia dado conta de que o Movimento al Socialismo (MAS), em geral, e Evo Morales, em particular, haviam trapaceado e queriam roubar as eleições, da oposição e do povo boliviano.

A convulsão social crescia e surgiu insistência ainda maior e mais legítima em pedir a renúncia de um presidente “manipulador”. Diante desse panorama desolador para o governo do MAS, diversos de seus líderes, entre os quais ministros, deputados, senadores, governadores e prefeitos, começaram a renunciar. Considerando essa atitude, o movimento popular presumia que a renúncia de Morales estivesse se aproximando. A previsão não tardou a se concretizar, e Morales por fim apareceu em público ao lado de seu vice-presidente e da ministra da saúde, em uma mensagem gravada, anunciando a tão desejada renúncia.

As mensagens do discurso eram claras. Eles responsabilizaram os líderes da oposição da Bolívia por todo o acontecido e os desafiaram a assumir a responsabilidade por controlar os conflitos no país, como que adivinhando que os conflitos iam se agravar. As ruas de todo o país festejavam inocentemente a renúncia de Morales, até que começaram a surgir ações de novos movimentos sociais favoráveis ao MAS, que protestavam contra a renúncia do presidente.

Atos terroristas na sede do governo causaram medo à população, e saques a lojas, a queima de 64 ônibus do sistema de transporte público, e incêndios em casas de personalidades conhecidas como oposicionistas fizeram os festejos se transformarem em pânico sistemático. O país estava sem liderança, assustado e incerto. A polícia não tinha meios para controlar as hordas terroristas e a pergunta que mais se ouvia era: onde estão os militares?

Na noite de segunda-feira, por fim, o comandante das forças armadas da Bolívia veio à luz para estabelecer que as forças armadas protegeriam o povo boliviano contra os ataques perpetrados. No mesmo dia, talvez por se ver sobrepujado, Morales aceitou o asilo político oferecido pelo México e na terça-feira partiu para lá, declarando que na Bolívia havia acontecido um golpe cívico, político e policial.

No mesmo dia, em uma assembleia extraordinária da OEA, o secretário geral da organização, depois de escutar as falas de representantes de diversos países membros, afirmou que claramente havia acontecido um golpe de Estado na Bolívia. E este aconteceu em 20 de outubro de 2019, o dia das eleições nacionais, quando o governo do MAS tentou roubar uma vez mais as eleições a fim de se perpetuar no poder. Impulsionada por esse respaldo internacional e por essas declarações, a Assembleia Legislativa boliviana horas depois empossou um novo governo constitucional de transição que terá a tarefa de reorganizar o TSE, com integrantes probos, e assim que isso estiver concluído, convocar novas eleições o mais cedo possível, mas desta vez em trapaças, sem irregularidades e sem fraudes.

Foto de Utenriksdept em Foter.com / CC BY-ND

Autor

Administrador Público e Cientista Político pela Universidade do Chile. Mestre em Gestão e Políticas Públicas pela Univ. Católica Boliviana / Univ. de Harvard. Mestre em Negociação e Relações Econômicas Internacionais.

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