Existe bastante consenso entre os analistas brasileiros acerca de que a recente invasão aos edifícios dos poderes públicos de 8 de janeiro têm o efeito imediato de abrir uma janela de oportunidade a favor da ação do governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Onde há menos consenso é em respeito à dimensão e ao prazo dessa janela.
A ampla rejeição do ataque foi demonstrada a nível institucional e nas ruas das principais cidades, onde foi exigido uma mão firme contra os invasores violentos. Mas outros dados são menos coincidentes. A votação de condenação do Senado seguiu adiante sem contar com o voto favorável dos senadores bolsonaristas. Do mesmo modo, em vários Estados houve também manifestações de seguidores do Bolsonaro a favor da liberdade dos detidos nos acontecimentos condenados pelas autoridades dos três poderes.
Quanto à duração deste lapso de oportunidade, tudo indica que é bastante incerta. Depende muito do manejo que Lula faça da crise e das reverberações que esta tenha em outros campos, como, por exemplo, entre os atores econômicos. A demanda de estabilidade política destes setores pesará sobre a equipe econômica do novo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que enfrenta o desafio de recuperar o equilíbrio macroeconômico do país.
Existe, assim, uma demanda dos setores radicais da esquerda, que também habitam o interior do PT, que pretendem aproveitar a intentona golpista para dar um salto adiante em um programa de confronto de classes. Com frequência, esta perspectiva se alimenta do desconhecimento – ou da subvalorização – da divisão sociocultural do Brasil, que se substituiu pela ideia de que o bolsonarismo é um movimento radical protofacista. É evidente que entre os seguidores de Bolsonaro existe um setor radical que desconhece as regras do jogo democrático, mas acreditar que os 49% que votaram em Bolsonaro estão nessa disposição é simplificar a análise. Por outro lado, acreditar que Lula já lidera um amplo campo político (esquerda, centro e direita), que abarca mais da metade da população que o apoiou nas eleições, é cair em uma miragem. Significa considerar a rejeição em massa do golpe como uma janela de oportunidade de longa duração para Lula. Uma miragem similar ao que ocorreu no Chile com a eleição de Boric, cuja equipe pensou ter uma ampla base de apoio e hoje não explica a queda de seu apoio popular (abaixo de 30% do eleitorado).
No entanto, é pouco provável que Lula se deixe cair na tentação de um vôo tão avançado. Se o novo mandatário evita esta perspectiva radical, o dilema que enfrenta compreende duas perspectivas possíveis: governar sabendo que o Brasil se encontra radicalmente dividido e tentar reunificá-lo, como prometeu na noite dos resultados eleitorais, ou governar apesar da divisão existente, tentando ocultá-la ou se esquivar dela. Ambas as opções têm seus próprios fundamentos.
Governar tentando contornar a polarização pode partir da simples espera, muito frequente após a crise, de que o tempo apazigua os ânimos, o que o faria depender do êxito do desenvolvimento de um governo geral do novo presidente. Mas existe outro argumento mais contundente: considerar que a reunificação do país é impossível. Esta é a orientação de vários analistas acadêmicos. Um artigo de Andrés Malamud, da Universidade de Lisboa, tomando como referência a tese de Timothy Power, professor de Oxford, de que nas sociedades polarizadas, não pode haver presidentes muito populares, sustenta que a única coisa a que se pode aspirar nestas sociedades é que “o ódio de metade da população se expresse nas urnas e pacificamente nas ruas, mas não nos palácios do Governo”. Em suma, aceitar que a polarização é inevitável, tentando mantê-la dentro dos limites pacíficos.
Pode ser que esta previsão, não muito edificante, seja a mais realista, mas significa assumir que a promessa de Lula de reunificar o país é só uma quimera, porque, independentemente da sua vontade, é inalcançável. Mas aceitar que a divisão da sociedade é insuperável significa aceitar que é impossível promover um diálogo sobre diferentes visões de mundo que permita alcançar novos consensos socioculturais ou, pelo menos, maiorias muito abrangentes a este respeito. Algo que implicaria negar a possibilidade de uma deliberação cidadã, fruto de um processo comunicativo (como propõe o sociólogo alemão Jürgen Habermas).
No caso do Brasil, este dilema tem um componente marcadamente religioso. Uma antiga colaboradora de Lula, Marina Silva, hoje ministra do meio ambiente, agora evangélica, sustenta que é necessário ter uma atitude de diálogo com o evangelismo “que em breve será quase metade da população brasileira”. E há um consenso no Brasil de que o bolsonarismo é claramente majoritário no âmbito evangélico. Será impossível realizar um diálogo com esta visão de mundo, claramente diferente da do Partido dos Trabalhadores? Esperemos que Lula não abandone o desafio de alcançar a reunificação do Brasil promovendo a deliberação cidadã, apoiada na execução de um bom governo. Manter essa promessa não só aumentaria o desejo de um Brasil menos violento, mas também traria alguma esperança de conceber um horizonte regional menos ameaçador. É necessário ter em mente o aviso peruano sobre o que significa tentar avançar um projeto radical em uma sociedade politicamente dividida. Talvez seja mais útil do que estar predisposto a usar a noção cansada do fascismo para analisar qualquer cenário de conflito, sobretudo através de comparações simplistas com os fenômenos liderados por Hitler ou Mussolini na primeira metade do século passado.
Autor
Enrique Gomáriz Moraga tem sido pesquisador da FLACSO no Chile e outros países da região. Foi consultor de agências internacionais (UNDP, IDRC, BID). Estudou Sociologia Política na Univ. de Leeds (Inglaterra) sob orientação de R. Miliband.