Pela primeira vez na história, um secretário de Estado dos Estados Unidos pisará na maior ilha marítima fluvial do mundo. De uma só vez, Mike Pompeo estará em Georgetown, Paramaribo e Boa Vista, três das principias cidades da Ilha das Guianas. A maior parte da cobertura jornalística e análises sobre esse fato tem se concentrado na tentativa de Donald Trump apresentar uma agenda mais dura e efetiva sobre a Venezuela pela busca de votos para os republicanos na Florida. Mas há outros fatores que explicam essa visita sem precedentes anunciada de última hora.
O contexto de fragmentação política e desintegração comercial da América do Sul torna nosso subcontinente um palco aberto para disputas de potências extrarregionais. A divisão entre Brasil e Colômbia, de um lado, e Argentina, México e Chile, de outro, tornou possível, também pela primeira vez na história, que no último sábado (12 de setembro) um estadunidense fosse eleito para presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Filho de mãe cubana, Mauricio Claver-Carone era assessor especial de Donald Trump e diretor executivo para assuntos do hemisfério ocidental no Conselho de Segurança Nacional. Ele teve como principal argumento de campanha a instrumentalização do banco como contraponto à expansão chinesa na América Latina. Na terça-feira (15 de setembro), foi anunciada a visita de Pompeo ao Norte da América do Sul.
A Ilha das Guianas é única, mas sua integração de infraestrutura é muito deficiente e nunca foi planejada em conjunto. Seus 1,7 milhão de km² equivalem ao território europeu de Alemanha, França, Espanha e Itália juntos. Localizada no norte da América do Sul, é, ao mesmo tempo, atlântica, caribenha e amazônica, tendo como principais demarcações os dois principais rios do norte da América do Sul, o Amazonas e o Orinoco, e a interconexão natural entre eles pelo canal Cassiquiare e o rio Negro; sua parte setentrional é dividida ao meio pelo rio Essequibo. Além de Suriname e Guiana, esse território é compartilhado por Brasil – pelos estados de Amapá, Roraima e a calha norte do Amazonas de todo o estado do Pará e do Amazonas até o rio Negro –, Venezuela – estados de Delta Amacuro, Bolívar e Amazonas – e a França – território ultramarino da Guiana.
No início deste ano houve eleições gerais tanto na Guiana como Suriname. Em ambos os países o pleito foi parelho e os derrotados demoraram a reconhecer os resultados. A vitória de Irfaan Ali na Guiana só foi formalizada após quatro meses. Em contraste, nas eleições de 2015, a hoje abandonada e moribunda União de Nações Sul-Americanas (Unasul) havia enviado missões eleitorais com participação do Brasil e os resultados foram aceitos imediatamente por todos os atores políticos dos dois países.
É possível que em poucos anos a produção de oficial de petróleo da Guiana supere a da Venezuela.
Do ponto de vista econômico, Guiana e Suriname têm poucas relações com a América do Sul. Apenas 2% do comércio exterior de ambos é com os demais dez países da região. Nos últimos dois anos há um boom petroleiro na Guiana que faz com que o país seja o único das América que terá crescimento econômico positivo em 2020. A expectativa de que a produção marítima de petróleo também se expanda no Suriname. É possível que em poucos anos a produção de oficial de petróleo da Guiana supere a da Venezuela. Embora tenha as maiores reservas de petróleo do mundo a Venezuela viu sua produção petroleira despencar devido à própria ineficiência e ao embargo que sofre nos últimos anos por parte dos EUA.
A estratégia de derrubar o governo da Venezuela com isolamento político e asfixia econômica desenhada por EUA e Grupo de Lima em 2017 teve como resultados concretos o colapso da produção petroleira registrada, o aprofundamento da crise social venezuelana e o fortalecimento político e econômico interno dos militares fiéis a Nicolás Maduro. Vendo-se distante de seus aliados tradicionais, a Venezuela tornou-se o maior devedor chinês na América Latina. A cada passo que os EUA e a OTAN avançam no entorno russo, Moscou fortalece os laços econômicos, políticos e militares com Caracas. Em 2002, quando a direção da petroleira estatal PDVSA tentava derrubar o governo, Hugo Chávez recorreu ao Brasil para fossem enviados navios para garantir o fornecimento interno de gasolina. Agora é o Irã que cumpre esse papel. Na eleição parlamentar de dezembro de 2015, vencidas pela oposição a Maduro, a principal missão externa de observação eleitoral foi da Unasul. Nas eleições parlamentares de dezembro de 2020, com baixa participação da oposição, a Turquia deve ocupar esse espaço.
Não é a primeira vez que Guiana e Suriname se veem em meio a grandes disputas geopolíticas. A Guiana se tornou independente do Reino Unido em 1966 e herdou antigas disputas territoriais entre britânicos e venezuelanos. O Suriname se tornou independente dos Países Baixos apenas em 1975 e foi rapidamente reconhecido pelo Brasil. Guiana e Suriname nasceram ameaçados pelas teses de internacionalização da Amazônia, que ganhavam força na Europa e em diversas organizações internacionais, e pela sombra da guerra fria.
Em 1978, liderados pelos presidentes Ernesto Geisel do Brasil e Carlos Andrés Pérez da Venezuela foi assinado o Tratado de Cooperação Amazônica com o objetivo de promover o desenvolvimento integral região e de suas populações e reafirmar a soberania exclusiva dos oito países da região sobre a governança da maior reserva de biodiversidade do mundo. Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela vetaram a possibilidade de que potencias extrarregionais participassem do tratado naquele momento e futuramente.
Em 1983, o governo surinamense era acusado pelos Estados Unidos e países europeus de graves violações de direitos humanos. Tanto a antiga metrópole como a potência hemisférica tentaram isolar política e economicamente o país com o objetivo de derrubar seu governo. Ato contínuo, Cuba e outros países de orientação socialista aumentaram a atuação no Suriname. A União Soviética aumentava sua presença no Caribe. Os Estados Unidos governados pelo republicano Ronald Reagan buscou apoio do Brasil de João Figueiredo para uma intervenção em Paramaribo. O Brasil se recusou e, alternativamente, enviou uma missão diplomática liderada pelo general Danilo Venturini ao Suriname. Deu-se início a uma ampla cooperação brasileira para a organização do Estado surinamense, que se afastou dos países socialistas, evitou a invasão americana e garantiu relativa estabilidade ao país nas últimas décadas. Meses depois, por situação análoga, os Estados Unidos invadiram a ilha caribenha de Granada e mataram seu presidente Maurice Bishop.
A ação do Brasil no norte da América do Sul foi eficiente para dissuadir a presença extrarregional seja quando atuou via de concertação regional
A ação do Brasil no norte da América do Sul foi eficiente para dissuadir a presença extrarregional seja quando atuou via de concertação regional, com o tratado de cooperação amazônica, ou bilateralmente, com a missão Venturini. Os governos de Geisel e Figueiredo sabiam que o maior prejudicado por um conflito movido por interesses extrarregionais na América do Sul seria o próprio Brasil.
A presença de Mike Pompeo na Guiana, Suriname, Roraima e Colômbia numa mesma viagem só pode ser entendida neste quadro de fragmentação da governança regional sul-americana e menor protagonismo brasileiro.
Autor
Economista. Trabalha no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA (Brasília). Foi Diretor de Assuntos Econômicos da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Doutor em Integração Latino-Americana pela Univ. de São Paulo (USP).