A eleição de Gustavo Petro para a Presidência da Colômbia confirmou uma segunda onda rosa na América Latina. Segundo indicam as recentes pesquisas de intenção de votos, Luiz Inácio Lula da Silva vencerá as eleições de outubro no Brasil – a confirmar se será em primeiro ou segundo turno.
As eleições brasileiras a esta altura se polarizaram definitivamente entre Lula e Bolsonaro. A questão é saber como e quando Bolsonaro tentará dar seu golpe. Se este será antes ou após as eleições, e qual alcance terá. De todo modo, é improvável que os eventuais motins de policiais e de militares, e as exibições de violência de fascistas e milicianos apoiadores de Bolsonaro impedirão a realização das eleições ou a posse de Lula. Tudo indica que os próximos meses serão de angústia e violência, mas que a democracia sairá vitoriosa. Ao menos momentaneamente, pois é evidente que o bolsonarismo seguirá vivo.
Assim, no começo de 2023, quase toda a região estará outra vez governada por partidos e movimentos à esquerda do espectro político. Isto incluirá países que não participaram da primeira onda rosa, como México, Colômbia e Peru. É bem possível que mais adiante as esquerdas retornem ao poder no Uruguai e no Equador.
Essa nova onda, porém, deve ser entendida como um novo momento – não como uma continuação da primeira – o ciclo de governos de esquerda na região durante a década de 2000 e primeira metade de 2010. Aquela se esgotou em meados da década de 2010, dando lugar a um avanço de governos de extrema-direita e centro-direita, que agora está em debandada antes mesmo de se consolidar.
Os desafios desta nova onda
O contexto global vivido hoje é bem distinto daquele do começo do século XXI, marcado pelo chamado “boom das commodities”. Agora, a situação é de crise, agravada pela pandemia e pela Guerra da Ucrânia – e uma provável recessão no próximo ano. A segunda onda rosa fracassará se não fizer autocríticas e adaptações em relação à primeira, terá resultados piores, e uma curta duração. Não pode ser “mais do mesmo” em um contexto pior que se transformou consideravelmente.
Evidentemente, as sociedades latino-americanas também não são as mesmas de duas décadas atrás. Estão marcadas por mais desemprego, subemprego, precarização, “uberização”. Estão atravessadas por valores neoliberais, de empreendedorismo e consumismo. O avanço das denominações religiosas neopentecostais tem relação com isto, e não é de pouca relevância neste quadro. Suas economias estão reprimarizadas e voltadas ao agronegócio exportador (ou na melhor hipótese às “maquiladoras”), com vastas regiões crescentemente entregues a atividades econômicas ilegais, aos paramilitares, à devastação e à grilagem.
Neste contexto, além da urgência de crescentes e urgentes investimentos sociais, esta segunda onda rosa poderá retomar a integração regional ativamente, com maior ênfase na integração produtiva e na circulação humana. Procurar enfrentar conjuntamente questões como a crise climática, a devastação da Amazônia, a superação definitiva da pandemia, até questões como a redução do neoextrativismo e da dependência no campo do conhecimento e da tecnologia.
Os movimentos sociais emergentes (muito mais fortes na região do que há duas décadas) poderiam encontrar nestes governos não agentes que os instrumentalizem ou que os calem, mas espaços democráticos de condensação de suas múltiplas demandas, derivadas das múltiplas formas de opressão. Neste sentido, estes governos poderiam fomentar versões mais radicais e decididas de democratização e repartição de poder.
Tudo isso seria possível? E seria desejável para estas forças de esquerda que vão voltando a ocupar os governos? Temo que não.
A chave está na mobilização popular
Portanto, é difícil imaginar que tudo isto poderia ocorrer sem mobilizações populares. Neste sentido, há algum potencial maior em países nos quais ciclos de mobilização antecederam a chegada das esquerdas ao poder, como Chile e Colômbia.
Ainda assim, o governo de Gabriel Boric começa a dar sinais de recuo e de paralisia no Chile (com a aprovação da nova Constituição ameaçada). E não se poderia esperar tanto de Petro na Colômbia, após seus movimentos de moderação para chegar como favorito a estas eleições – aprofundados para garantir sua vitória por curta margem no segundo turno. O governo de Petro fará muito se democratizar a política colombiana – já começou a fazer ao “normalizar” as esquerdas, agora desassociadas das guerrilhas e da violência no imaginário daquele país.
A nova onda no Brasil de Lula
No Brasil, menos se pode esperar. Configura-se neste momento uma frente ampla para derrotar o fascismo e as ameaças reais de derrocada definitiva da democracia brasileira – em processo de desmonte desde o golpe parlamentar de 2016 que derrubou Dilma Rousseff.
Assim, em princípio, o novo governo se apresentará como uma tentativa de reconstrução democrática e institucional, e uma retomada da agenda (em condições piores) de redução da fome, da pobreza, do desemprego, de reativação econômica, que caracterizaram as primeiras administrações de Lula.
Algumas novidades poderiam vir das mobilizações ecológicas, feministas, negras, LGBTQIA+, indígenas – hoje muito mais fortes no Brasil do que na primeira eleição de Lula em 2002. Nestas áreas haverão de se apresentar novas propostas e modos de agir. Mas de novo, a chave está nas ruas.
Para além das mobilizações visíveis, nunca se pode prever o que pode gerar um estopim nas mobilizações de rua como o estallido social chileno. O analista social sempre terá dificuldades em observar os movimentos subterrâneos que levam a um fenômeno como aquele, até que ele ocorra.
Entretanto, sem mobilizações populares que empurrem os governos, o retorno das esquerdas no Brasil e em outras partes da região provavelmente terá vida curta, configurando um ciclo mais frágil que o anterior.
Autor
Professor de Ciência Política da Univ. Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Vice-diretor de Wirapuru, Revista Latinoamericana de Estudo das Idéias. Pós-Doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Univ. de Santiago de Chile.