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As vulnerabilidades decorrentes do aumento do nível do mar

No Panamá, entre 2 e 3% da superfície terrestre existente hoje será afetada pelo aumento do nível do mar até 2050.

O aumento do nível do mar não apenas ameaça a infraestrutura costeira e os meios de subsistência tradicionais, mas também esclarece as profundas lacunas existentes nas políticas de habitação e planejamento do uso da terra na América Latina. De acordo com o Relatório sobre o Estado do Clima na América Latina e no Caribe 2020 da Organização Meteorológica Mundial (OMM), “na América Latina e no Caribe, mais de 27% da população vive em áreas costeiras, e estima-se que de 6 a 8% vivam em áreas com risco alto ou muito alto de serem afetadas por ameaças costeiras”.   

No Panamá, uma nação com 2.988 quilômetros de litoral em ambos os oceanos, os dados publicados pelo Ministério do Meio Ambiente (MIAMBIENTE) e analisados pelo Observatório de Riscos Urbanos (ORU) da Florida State University e da Esri Panama indicam que entre 2 e 3% da superfície terrestre existente hoje será afetada pelo aumento do nível do mar até 2050.

Uma das regiões que mais precocemente começou a sentir o impacto desse fenômeno é a região indígena de Guna Yala, que surge como um microcosmo das complexas interações entre as mudanças climáticas e as comunidades vulneráveis. Os impactos são mais perceptíveis nessa comarca devido à sua localização no Mar do Caribe, onde, de acordo com dados da Organização Meteorológica Mundial (OMM), o aumento do nível do mar foi maior do que a média mundial de 3,3 milímetros anuais, com uma média de 3,6 mm por ano.

Gardi Sugdub: os primeiros migrantes climáticos panamenhos

A primeira comunidade a tomar a iniciativa de se mudar para o continente na comarca de Guna Yala foi Gardi Sugdub, uma pequena ilha de 300 metros de comprimento por 125 metros de largura, apenas um metro acima do nível do mar e de cerca de 1.054 habitantes. Um relatório da Human Rights Watch de 2023 observa que “o planejamento para a realocação começou em 2010, quando os líderes de Gardi Sugdub criaram o comitê de bairro para organizar o processo, garantir e liberar um novo terreno no continente doado por membros da comunidade”.

O mesmo relatório da Human Rights Watch prossegue observando: “A realocação planejada é geralmente considerada uma medida de último recurso, depois que todas as estratégias de enfrentamento in situ – como levantar as casas ou construir diques – foram testadas e consideradas inadequadas. Embora os danos causados pelas enchentes e a previsão de futuros impactos da mudança climática sejam, em geral, os fatores mais visíveis”.

De modo geral, a condição da comarca de Guna Yala é de negligência do Estado. Ela subsiste sob pressões relacionadas à superlotação, condições precárias de moradia, falta de acesso a serviços básicos, falta de infraestrutura, migração ilegal, tráfico de drogas, doenças sexualmente transmissíveis e migração para a cidade, além do aumento de eventos climáticos extremos e da deterioração ambiental.

Para os Gunas, a agulha que marca o avanço do progresso social mal se moveu durante o século XXI. Entre o censo de 2000 e 2023, a porcentagem de domicílios sem água potável passou de 31% para 24% e a de domicílios sem saneamento, de 99% para 95%. As famílias com renda inferior a US$ 600 por mês passaram de 88% para 74%. A superlotação é outro problema grave nessa região. Os Gunas registraram o maior número médio de habitantes por moradia no país, com 7 e 4 habitantes nos censos de 2000 e 2023, respectivamente. 

Em relação a esses indicadores, o que aconteceu foi que a população Guna começou a migrar. Em 2000, 50% dos indígenas Guna residiam na comarca, e hoje essa porcentagem é de apenas 27%. O destino desses migrantes tem sido a província do Panamá – onde está localizada a capital do país -, na qual se concentram 32% da população guna.

Promessas não cumpridas e os desafios de um futuro não tão distante

O relatório publicado pela Human Rights Watch também enfatiza o estado de negligência do povo indígena Guna: “O histórico do governo não é convincente: em 2011, o MINSA prometeu um hospital; em 2012, o MEDUCA prometeu uma escola modelo; e em 2017, o MIVIOT prometeu 300 moradias. Todos os projetos foram iniciados, mas nenhum foi concluído”. Até o momento, a mudança da comunidade não ocorreu, e as infraestruturas estão construídas e inutilizáveis.

A terra, seu acesso, planejamento e gestão é um dos principais desafios desse processo de realocação das comunidades ameaçadas pela elevação do nível do mar. A Displacement Solutions, uma ONG que tem visitado reiteradamente a comarca de Guna Yala desde 2014, afirma: “Em última análise, será a terra que estará no centro da maioria das políticas criadas para lidar com as consequências do deslocamento climático; as pessoas perderão terras e precisarão de novas terras para recomeçar suas vidas”.

Diante da ameaça que a mudança climática representa para as comunidades, os Princípios da Península surgem como um “instrumento jurídico internacional sobre os direitos das pessoas deslocadas pelo clima”. Esses princípios indicam que é necessário, “antes de qualquer realocação, que seja preparado um plano mestre de realocação que aborde questões críticas, incluindo: i) aquisição de terras; ii) preservação de instituições sociais e culturais existentes; iv) acesso a serviços públicos”, entre outros aspectos. Entretanto, até o momento, o Panamá não dispõe de estudos que permitam implementar esses princípios.

A ameaça do aumento do nível do mar é um desafio compartilhado por pelo menos 928 comunidades e 700.000 pessoas no Panamá. Na comarca de Guna Yala, pelo menos 40 comunidades e 32.000 pessoas serão potencialmente afetadas. O deslocamento das comunidades não será necessário em todos os casos, mas será preciso investir e planejar para proteger seus ativos e meios de subsistência.

2050 ainda parece muito distante. Foi em 1983 que os primeiros sinais de aumento do nível do mar foram identificados no Panamá, e ainda o eram em 1998, quando eles foram confirmados. 2010 – quando o povo de Gardí Sugdub decidiu se mudar para o continente – parece ter sido há pouco tempo, e agora, em 2023, estamos na metade do caminho entre o passado e o futuro. No entanto, a história deste artigo conta como, mesmo depois de 40 anos de avisos, ainda não estamos preparados para o desafio imposto pelas mudanças climáticas.

Autor

Geógrafo e historiador por la Universidad de Panamá. Investigador asociado en el Observatorio de Riesgo Urbano de Florida State University. Máster en Tecnologías de la Información Geográfica por la Universidad Autónoma de Barcelona, España.

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