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Crise carcerária e narco-violência no Equador

Em 13 de novembro de 2022, cinco porta-vozes de organizações criminais anunciaram desde diferentes prisões um acordo de paz em resposta à extrema violência narco que o Equador sofre. Eles o fizeram através de vídeos gravados em um formato comunicacional que imita os pronunciamentos presidenciais do atual governo. Mensagens curtas de aproximadamente dois minutos, sem muitas explicações ou justificativas e produzidas para circular nas redes sociais. Nas imagens, os detentos olham diretamente para a câmera. A composição visual é corporativa e o enquadramento é político. Uma cena completa mostra o representante de cada organização cercado por dezenas de detentos. O som é relativamente bom e o tom de voz é respeitoso, até mesmo conciliador. As filmagens poderiam muito bem fazer parte de uma campanha publicitária feita para uma empresa ou um partido político; no entanto, são mensagens em vídeo feitas por gangues carcerárias ultra-violentas que o Estado equatoriano não só tolerou como também fomentou nas prisões a fim de produzir inteligência policial sobre narcotráfico e delitos relacionados.

Os pronunciamentos são dirigidos ao governo e à cidadania. Em um dos vídeos, o porta-voz prefigura a sigla GDO antes de nomear as organizações que assinaram o acordo de paz. GDO significa grupo de delinquência organizada, uma categoria policial utilizada para classificar redes criminosas associadas a economias ilegais.

Por que é do interesse dos detentos auto denominarem-se GDO? Desde 2019, a prisão equatoriana tem sido um serviço mais da Polícia Nacional e a população penitenciária é a fonte mais importante de inteligência policial. Ser considerado um GDO é vital para os detentos porque lhes permite negociar privilégios e capacidades como, por exemplo, solicitar transferências, auto-segregar-se nas alas ou trazer objetos proibidos para os centros de encarceramento.

Em troca, a polícia recebe informações sobre o funcionamento logístico dos mercados de drogas ilegais do país. Vale ressaltar que as apreensões de drogas são o indicador mais importante na guerra contra o narcotráfico liderada por Washington. Neste contexto, ao afirmar que a guerra não é contra o Estado, os GDOs estão lembrando ao governo que o crime organizado precisa do poder estatal para ser lucrativo e que eles não buscam desestabilizar o regime, uma hipótese insistentemente sugerida pelas autoridades responsáveis pela segurança e pelo próprio presidente da República.   

Os porta-vozes também negam que suas redes criminosas sejam responsáveis pela recente onda de assassinatos, extorsões e sequestros. Eles acusam um GDO ” contrário ” de ser a causa da insegurança e da violência. O GDO em questão é o maior do país e o mais próximo do trabalho policial nas prisões; de fato, o referido GDO cresceu de mãos dadas com a unidade de inteligência policial penitenciária.

É comum que o poder criminal e o poder estatal se retroalimentem em sociedades onde o crime organizado exerce soberanias informais sobre populações historicamente abandonadas pelo Estado. O problema do caso equatoriano é que o governo tem pouco poder político sobre a polícia e a política de segurança. Na verdade, o governo está cada vez mais dependente da polícia para administrar problemas sociais como o desemprego e dissensos democráticos, como o protesto. Isto impede que ele desmantele o modelo de intercâmbio e cooperação clandestina entre o aparato policial e o crime organizado. 

Os vídeos também pedem aos cidadãos que denunciem ao Ministério Público se são vítimas de ‘vacunas’ – palavra usada na América Latina para se referir a diferentes práticas extorsivas em áreas onde o poder estatal tem capacidades limitadas ou é percebido negativamente. Os porta-vozes indicam que os GDOs não estão por trás da coleta de vacunas e dizem estar dispostos a colaborar com o sistema de justiça para identificar os culpados.

A extorsão não é um fenômeno novo no Equador; existem testemunhos de extorsão que registram práticas desta natureza há décadas, tanto entre pequenos e médios comerciantes urbanos como entre agricultores e empreendedores rurais. A novidade é o tipo de extorsão a que os cidadãos são submetidos atualmente e sua relação com a prisão.

A extorsão carcerária no Equador é conhecida com o nome de empeño. Estar empeñado (penhorado) implica que a pessoa que vive atrás das grades se torna caução ou garantia de uma dívida criada por um grupo de detentos de forma arbitrária. As pessoas penhoradas devem pagar tal dívida em um prazo determinado, geralmente pedindo dinheiro a sua família. Esta forma de “vacuna” não é um imposto informal nem um serviço de proteção forçada, é a redução da vida prisional à extração predatória de recursos financeiros.

Em meados dos anos 2000, a prática foi proscrita pelos mesmos detentos no marco de um processo de pacificação. Entretanto, esta prática reapareceu, às vezes com outros nomes, desde o início da crise carcerária e, no ano passado, se espalhou pelas ruas das cidades mais populosas.

O fato de os GDOs falarem sobre vacunas em seu pronunciamento de paz é relevante por duas razões. Por um lado, essas organizações sabem que é impossível controlar práticas extorsivas se elas não fazem parte de processos concretos de construção de soberanias criminais, onde a extorsão é reinterpretada como um serviço à comunidade e opera como uma forma de imposto informal.

Por outro lado, é evidente que as redes criminosas percebem a crescente rejeição dos cidadãos. Isto nem sempre foi assim; vários grupos ligados ao narcotráfico contavam e alguns ainda contam, com certa legitimidade, especialmente em lugares onde a soberania estatal está em disputa, como é o caso da fronteira norte.

Para concluir, vale ressaltar que o poder estatal e o poder criminoso no Equador co-produzem, se justapõem e se assemelham cada vez mais. A estratégia de segurança do governo gera violência em vez de reduzi-la. Recrutar os líderes dos GDOs como fontes humanas de inteligência policial foi um erro. Esta intervenção policial reorganizou o mercado de cocaína com base nos princípios de denúncia e vingança, criando condições para o surgimento da extrema violência narco. 

Neste momento, as organizações criminosas além de controlar as ruas, também controlam a narrativa da insegurança. A polícia age de forma reativa com base nas informações oferecidas pelos líderes das redes de delinquentes. Lamentavelmente, o governo não parece nada interessado em mudar sua política de ‘mano dura’.

Autor

Doutor em Antropologia pela Univ. da Califórnia, Davis. Professor visitante no Centro de Desenvolvimento e Meio Ambiente da Univ. de Oslo. Co-fundador de Kaleidos e diretor da plataforma digital EthnoData, Univ. de Cuenca (Equador).

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