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Da Máfia e do tráfico de drogas

Para seguir pensando sobre o fenômeno do tráfico do drogas na América Latina e ganhar mais clareza quanto a ele, convém pensar comparativamente. Comparar entendido não no sentido de assimilar (forçar a equalização de) duas ou mais coisas, mas sim no sentido de colocá-las em contraste analítico (analisá-las juntas, frente a frente, para em seguida diferenciá-las e separá-las naquilo em que não precisam ficar unidas). Faz sentido comparar o tráfico de drogas à Máfia. Porque já o fiz, me adianto: são a mesma coisa? Tráfico de drogas é máfia e máfia é tráfico de drogas? Não.

Ainda que tenha sido estudada, com maior ou menor êxito, por “celebridades” acadêmicas de eras distintas, como Gaetano Mosca e Diego Gambetta, dessa vez recorreremos, quanto à Máfia, a Giuseppe Carlo Marino, historiador e professor da Universidade de Palermo, na Sicília, que busca na cultura as causas e efeito:

“A especificidade da cultura mafiosa clássica, enquanto cultura antimoderna (…): um culto quase obsessivo dos interesses identificados com o assunto; a inclinação a resolver pela força todos os problemas conectados com a tutela de uma ordem hierárquica que estabelece e legitima em níveis distintos os títulos para a obtenção de ‘honra’ e ‘respeito’ (não é por acaso que os mafiosos gostem de se definir como ‘homem de honra’ e ‘homem de respeito’); a absoluta identificação das normas sociais (e portanto do ‘direito’) com o costume; a enfática subordinação às regras do senso comum e da homenagem formal ao poder e aos poderosos, além dos preconceitos consolidados, em um marco de conformismo que vincula ao princípio da autoridade todas as formas de vida social, (…) impondo uma moral de resignação, obediência, cumplicidade e ‘omertà'”. (“Historia de la Mafia: Un Poder en las Sombras”, Barcelona, Vergara, 2002, pág. 23-24).

Entre os fatores da máfia se encontram a ausência do Estado ou a presença de um Estado fraco e injusto, o caciquismo, graus de injustiça social, corrupção, a religiosidade familiar de uma forma específica de catolicismo, e o machismo. São fatores que persistem ao longo do tempo e que se movimentam complexamente entre causa e efeito. Mesmo assim, a máfia e a criminalidade a ela associada lançam mão do nacionalismo e não podem ser compreendidas sem a venda de proteção. Essa venda como negócio é a ordem que substitui o Estado, de fora ou de dentro.

Cabe apontar que estamos falando da Máfia original, que, como afirma Marino, “é, em sentido estrito, um fenômeno siciliano” (pág. 25). Concordo com o professor em que “se trata de uma criminalidade muito especial” (pág. 26). Um problema siciliano, histórico, que não está associado apenas à delinquência e não envolve simplesmente a delinquência. Não é delinquência comum nem tampouco uma simples “delinquência organizada” –pelo menos não uma delinquência qualquer. E nisso, a Máfia e o tráfico de drogas se parecem.

Não se pode afirmar que a máfia é a mesma coisa que o tráfico de drogas e nem que o tráfico de drogas é a mesma coisa que a máfia. Porque suas origens e desenvolvimento histórico são diferentes”

Sim, o fenômeno do tráfico de drogas é igualmente especial. A máfia –original ou derivada– pode incorporar o tráfico de drogas, mas ela é mais que o tráfico ilegal de drogas; o tráfico de drogas pode funcionar como máfia, mas não é uma máfia em si. Dois fenômenos distintos porém conectados, ou que têm relações mas precisam ser distinguidos. Não se pode afirmar que a máfia é a mesma coisa que o tráfico de drogas e nem que o tráfico de drogas é a mesma coisa que a máfia. Porque suas origens e desenvolvimento histórico são diferentes. Em todo caso, se pode dizer que hoje –não em sua origem e nem pela maior parte do passado–, a máfia também representa um subtipo de tráfico de drogas, e que o tráfico de drogas inclui um tipo de máfia, sem que a venda de proteção seja idêntica.

O que é o tráfico de drogas, portanto? Defino-o como o fenômeno econômico, sociocultural e político (nessa ordem) da produção, distribuição e venda ilegal de drogas, por elas (as drogas) serem ilegais, e cujos agentes recorrem variável mas sistematicamente à violência e à corrupção para operar em um mercado 100% negro que lhes interessa preservar como tal.

O que afirmei tem três grandes implicações. A primeira é que o tráfico de drogas não é o consumo de drogas ilegais. E o consumo ilegal de drogas não é o tráfico. A segunda é muito maior: se no caso da Máfia siciliana a matriz é a grande história da negociação político-econômica que forja Estados débeis e uma cultura de oposição ao Estado, no caso do tráfico de drogas a matriz é a proibição. Em termos causais, na Máfia há uma oposição histórica à lei –a toda ou quase toda legalidade; no tráfico de drogas, em contraste, tudo começa pela aplicação da lei: ele existe por efeito de leis ou de uma legalidade que proíbe formalmente a droga X ou a droga Y. Só depois dessa proibição as “histórias largas” fazem diferença: características secundárias e regionais (do tráfico de drogas colombiano, do tráfico de drogas mexicano, do cartel 1 do estado mexicano A hoje, do cartel 3 do estado mexicano B ontem, etc.). Insisto: se a Máfia não nasce por uma lei ou contra ela a não ser pelo contexto de oposição ao Estado ou favorecimento por ele, o tráfico de drogas não pode nascer sem uma lei. Como Al Capone e a ilegalidade do álcool, o tráfico de drogas nasce da proibição e contra ela, ainda que um termine por favorecer o outro, por defender o outro, enquanto os contextos adicionam especificidades.

A terceira e última implicação: o antídoto essencial ou principal para o tráfico de drogas é, para dor dos amantes da linha dura, a legalização e regulamentação estatal das drogas um dia decretadas ilegais. A América Latina não chegará ao século 21 pelo caminho de uma guerra estúpida do século 20, que já está perdida.

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Cientista político, editor e consultor. Trabalhou no CIDE (Cidade de México) e na Universidade Autônoma de Puebla.

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