A marcha de domingo em defesa do Instituto Nacional Eleitoral (INE) e da democracia no México foi um sucesso absoluto para seus organizadores. Há muito tempo não se registrava um evento multitudinário deste tipo na capital do país. Os cidadãos que marcharam exigiram ao governo federal chefiado por Andrés Manuel López Obrador (AMLO) que retire seu projeto de reforma eleitoral, o que de fato reduz a autonomia do INE. Há vários anos, AMLO vem tentando minar a autonomia e o orçamento do INE. Seu projeto de reforma é sua tentativa mais recente e bruta de submeter o instituto a sua órbita de influência, garantindo a seu partido MORENA um quadro eleitoral vantajoso. Esse objetivo antidemocrático foi enterrado no domingo. Ficou claro que a reforma eleitoral não passará; e não porque os partidos não a aceitam (o que também é o caso), mas porque foram os próprios cidadãos que disseram “basta”.
A reação do oficialismo à marcha foi a de sempre: desqualificação e insultos. Chama atenção, porém, que uma das principais críticas do governo aos participantes é que são de “classe média”. Não estão totalmente equivocados, a exigência de democracia no México tem sido historicamente uma demanda de classes médias urbanas, particularmente da Ciudad de México (CDMX).
O conceito de “classe média” no país é muito amplo. Segundo uma pesquisa, 6 em cada 10 mexicanos se consideram de classe média. E embora não seja tão fácil como o oficialismo faz para marcar com clareza as linhas sociais, um olhar rápido sobre o passado revela que foram de fato as camadas sociais médias e urbanas que exigiram uma mudança democrática no país.
Conta-se nos dedos de uma mão os anos que o México viveu em democracia durante o século XX. 14 meses com Francisco I. Madero, entre novembro de 1911 e fevereiro de 1913, e os anos posteriores a 1996, quando o INE adquiriu autonomia do poder executivo. Fora isso, durante todo o resto do século o país viveu em desordem ou sob regimes autoritários, como o hegemônico Partido Revolucionário Institucional (PRI, 1929-2000).
Emergindo das cinzas da Revolução Mexicana (1910-1920), o PRI formou-se de início como uma federação de caudilhos revolucionários que decidiram deixar de guerrear para melhor repartir o poder. Criaram assim um grande instituto político que acomodaria toda a “família revolucionária”, que conservaria e acenderia ao poder de forma pacífica e ordenada durante as próximas sete décadas.
A fórmula do PRI de incorporar e acomodar interesses em seu meio funcionou às mil maravilhas, e assim grupos e organizações seguiram se juntando ao partido. Tanto que em 1934, sob o governo de Lázaro Cárdenas, o PRI mudou seu perfil, tornando-se um partido de trabalhadores de massa e camponeses organizados respectivamente na Confederação de Trabalhadores do México (CTM) e na Confederação Nacional Campesina (CNC).
Em 1943, o PRI formou um terceiro setor para abarcar a crescente classe média do país sob a égide da Confederação Nacional de Organizações Populares (CNOP). Este setor reuniria organizações urbanas profissionais e populares de todo tipo: burocratas, micro, pequenos e médios empresários, organizações de bairro, profissionais, trabalhadores independentes, aposentados, pensionistas, trabalhadores de transporte, jovens e estudantes universitários, mulheres trabalhadoras e chefes de família etc. Setores médios urbanos, em outras palavras.
Anos antes, porém, o Partido de Ação Nacional (PAN) foi fundado no CDMX como um partido de centro-direita de orientação democrata-cristão com o objetivo claro de buscar uma mudança democrática no país. Durante décadas o PAN formou seu nicho entre as classes médias urbanas que, embora talvez não compartilhassem sua ideologia, mas viam nele um veículo anti-PRI através do qual expressar um desejo de mudança.
À esquerda, não foi até 1977 que ocorreu uma abertura política que permitiu que partidos dessa orientação também começassem a ser veículos de aspirações democráticas. Isto foi particularmente verdadeiro no caso da CDMX. Os números não mentem: em 1976, durante o auge do PRI, os votos para a oposição na capital do país eram o triplo da média nacional.
A CDMX não tem uma vocação de esquerda, mas de oposição. Essas classes médias que AMLO revigora dia após dia têm sido historicamente a oposição ao autoritarismo no país. No século XX enfrentaram o autoritarismo do PRI e no século atual fazem o mesmo diante da tentativa de regressão autoritária de AMLO sob o pretexto de “reforma eleitoral”.
Que lições pode-se extrair desta farsa? Três muito claras. A primeira é que a reforma como tal está morta e enterrada, a marcha passou por cima dela e a esmagou. Segunda, a cidadania parou o poder no caminho. AMLO conhecia os limites de suas forças e que a paciência da sociedade também tem seus limites. Terceira, a prefeita da CDMX e favorita do presidente para sucedê-lo, Claudia Sheinbaum, foi a grande perdedora do dia. Ao tentar ficar bem com seu chefe, desqualificando os cidadãos que participaram da marcha, deu um tiro no pé ao antagonizar seus próprios eleitores que lhe deram sua confiança em 2018 para governar a cidade.
De fato, embora seja verdade que foram as camadas médias urbanas do país que impulsionaram a transição democrática do país (1977-1996) em grande parte através do PAN, também é verdade que seus votos não são patrimônio da direita ou da esquerda. De fato, o que vimos no México nas últimas eleições é que as lealdades partidárias dos eleitores de classe média são bastante flexíveis. O próprio AMLO foi votado por esses setores médios da capital aos quais deve sua ascendente carreira política. Foi inclusive apoiado por estes setores em 2005, quando o governo de Vicente Fox (2000-2006) tentou desajeitadamente evitar que concorresse à presidência, levantando acusações criminais contra ele. Foram dezenas de milhares de pessoas que, como neste domingo passado, saíram às ruas para apoiá-lo na defesa de seus direitos políticos. Sei disso em primeira mão porque eu estava lá.
Autor
Cientista político e economista. Doutor pela Universidade de Toronto. Editor sênior da Global Brief Magazine. Especialista em Desenho de Pesquisa Social na RIWI Corp. (Real-Time Interactive World-Wide Intelligence).