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Relações África-América Latina: o legado de Desmond Tutu

O falecimento do arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu, em 26 de dezembro de 2021, nos faz recordar o pouco interesse latino-americano em temas africanos. O fato mereceu um espaço reduzido nos diários e noticiários televisivos da região. Noticiou-se um tanto vagamente o falecimento de um “símbolo da luta contra o apartheid ao lado de Nelson Mandela e ganhador do Prêmio Nobel da Paz”. No dia seguinte, vida que segue. Não parecia que havíamos perdido um dos maiores lutadores, pensadores e líderes religiosos de nossa época.

Estamos longe de entender e se interessar pela África. Isto ocorre mesmo no Brasil, país de maioria negra e com o maior contingente populacional com raízes negro-africanas fora do continente. Que dizer de outros países da nossa região? As relações entre Brasil e África vêm se desfazendo nos últimos anos, enquanto os contatos dos outros países latino-americanos com aquele continente nunca se aprofundaram – com a notável exceção de Cuba.

Celebrar o legado de Tutu seria um caminho simples para informar e ir além de temas como apartheid, guerra civil, fome, novas variantes do coronavírus e golpes militares – basicamente o que se notícia sobre o continente na imprensa latino-americana. Em particular, seria uma forma de destacar a importância do pensamento africano e seu impacto global.

Fundador da Teologia Negra Africana

 Tutu foi muito mais que companheiro de Mandela na luta contra o apartheid. Trata-se de um dos fundadores da Teologia Negra Africana, com inspiração na Teologia Negra norte-americana, que teve como principal expoente o reverendo Martin Luther King Jr. Também na Teologia da Libertação Latino-Americana, iniciada em 1968 na Conferência Episcopal de Medellín e desenvolvida por Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff, entre outros. O arcebispo sul-africano foi mais um a demonstrar que é possível construir uma igreja ombro a ombro com os oprimidos.

Sobre estas filiações, Tutu afirmou que a igreja na África deve se comprometer com a causa da libertação. Para ele, Deus era o grande Libertador, o Deus do Êxodo que conduziu uma turba de escravos para fora do cativeiro e os libertou. Daí derivava sua defesa da libertação total dos “filhos de Deus”, em nível político, social e econômico. Enfatizando sua inspiração em fontes latino-americanas, apontou que a teologia negra é a teologia do oprimido, uma teologia de libertação. E foi baseado em sua teologia que o arcebispo se posicionou contra o apartheid. Segundo ele, “a Bíblia acabou sendo o livro mais subversivo imaginável numa situação de injustiça e opressão”.

Inspirador da moderna identidade sul-africana

Para o bem e para o mal, Tutu foi um dos fundadores da identidade da África do Sul pós-apartheid, com a Comissão da Verdade e Reconciliação que ele presidiu e com sua ideia de uma “Nação Arco-íris”.

O que ele chamou de “justiça restaurativa” foi a base da comissão da verdade sul-africana, pensada como elemento central da pacificação, reconstrução e unificação do país. Funcionando de 1995 a 1998, ela constituiu-se numa das principais experiências mundiais de comissões da verdade, ao condicionar a anistia a um depoimento público do requerente, no qual a principal exigência deveria ser “contar a verdade” sobre os crimes para os quais solicitava anistia.

O elemento mais elogiado naquele processo foi sua condicionalidade, evitando a oferta indiscriminada de anistia (e esquecimento) característica de casos como o brasileiro. O ponto mais contestado foi a limitada reparação dos crimes (ao contrário do que ocorreu em casos como o argentino), na medida em que enfatizou a exposição pública dos violadores de direitos humanos e o registro e construção de uma memória coletiva.

Neste contexto, Tutu insistiu na necessidade de “perdão, mas não de esquecimento”. Para justificá-lo, lançou mão de dois argumentos. Um se baseou em sua já mencionada leitura de esquerda do cristianismo: a necessidade de libertação tanto do opressor quanto do oprimido. Outro argumento foi apresentar a justiça restaurativa como uma “jurisprudência tradicional africana”. Sua preocupação não passaria por retribuição ou punição, mas por curar violações, corrigir desequilíbrios, restaurar relações rompidas. Ela buscaria reabilitar tanto a vítima quanto o perpetrador, a quem deve ser dada a oportunidade de ser reintegrado à comunidade que ele feriu com sua ofensa.

A esta necessidade de reconciliação, Tutu conectou sua ideia da África do Sul como a “Nação Arco-Íris”, proposta associada ao multiculturalismo tão em voga naquele momento. Esta ideia de uma nação que englobaria todas as cores sem necessidade de que elas se diluíssem assumiu um papel importante na nova identidade nacional, penetrando fundo na autoimagem da África do Sul dos primeiros anos pós-apartheid. O pluralismo social e étnico herdado pelo país não seria um entrave para seu desenvolvimento, mas sua maior riqueza. Tutu defendia que aquele Estado podia se viabilizar como nação.

Formulador do ubuntu

Outra proposta defendida por Tutu era o ubuntu, do qual se tornou o principal divulgador global – conectando-o a outros valores que defendeu nas últimas décadas ao lado de personalidades como o Dalai Lama, como o ecumenismo e a cultura de paz. Ubuntu seria uma forma de garantir a coesão de uma sociedade profundamente dividida e desigual, marcada pela violência e pela opressão, constituindo-se na possibilidade de convivência dos antigos opressores e oprimidos.

Como dito, se um dos pilares de Tutu era o cristianismo de libertação, o outro era a herança africana na qual o ubuntu se insere. Para o arcebispo, ubuntu é um elemento central da visão de mundo africana. Nesta concepção, a vida de todas as pessoas é interligada, bem como a humanidade se integra à natureza e cada geração se integra às anteriores e às que virão.

Tutu definia o conceito através do provérbio “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Para ele, “uma pessoa com ubuntu se afirma pelos outros, não se sente ameaçada se os outros são capazes e bons; ela tem uma garantia que vem de saber que ela pertence a um todo maior e é diminuída quando outros são humilhados ou diminuídos, quando outros são torturados ou oprimidos, ou tratados como se fossem menos do que são. O que desumaniza você inexoravelmente me desumaniza”.

Tutu entendia ubuntu também como expressão de uma nostalgia universal por um paraíso perdido, originada na nossa expulsão do Jardim do Éden. Se a humanidade vivencia um processo centrífugo de alienação, haveria em contrapartida uma divina força centrípeta que impele à comunidade, à reconciliação, à justiça, que viria desde o “princípio dos tempos”.

Tutu levou o ubuntu para o mundo, contribuindo para sua transformação num conceito da moda. Ubuntu inspirou sistema computacional, literatura de autoajuda, prática de coaching e lições de empreendedorismo. Aliás, nisto se aproxima de outro conceito original do Sul Global, o “bem viver” latino-americano. Mas, para além de estranhas reapropriações, o sucesso global do ubuntu é mais um indicativo da importância do pensamento de Tutu para a contemporaneidade.

Autor

Professor de Ciência Política da Univ. Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Vice-diretor de Wirapuru, Revista Latinoamericana de Estudo das Idéias. Pós-Doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Univ. de Santiago de Chile.

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