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Covid-19 e patologias do poder

Co-autora Belén Herrero / Na medida em que os principais ensaios clínicos chegam ao seu fim, a Organização Mundial da Saúde estima que, em 2021, serão necessárias 2 bilhões de doses contra Covid-19. Tudo indica que, uma vez que as primeiras vacinas estejam disponíveis, a lógica do mercado prevalecerá. Quem chegará primeiro? 

Nove meses após o início da pandemia, nenhuma ação foi tomada para declarar estas vacinas como um bem público mundial. Estima-se que as nações ricas – com apenas 13% da população mundial – já tenham adquirido previamente metade do fornecimento potencial de vacinas no mundo. A isso se soma o fato de que os distintos valores laborais vinculados à fabricação continuam exigindo a exclusividade e a proteção da propriedade intelectual. Isto impede que países de baixa e média renda se preparem mais rapidamente para produzir e exportar versões genéricas.

O debate sobre a soberania sanitária na América Latina assume um protagonismo central”

Aqui o debate sobre a soberania sanitária na América Latina assume um protagonismo central. Por um lado, está o Fundo de Acesso Global para Vacinas (iniciativa Covax, sua sigla em inglês), uma iniciativa público-privada codirigida pela Aliança Gavi para as Vacinas (Gavi), a Coalizão para a Promoção de Inovações na Preparação para Epidemias (CEPI) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). COVAX busca se converter em um mecanismo global para a compra de vacinas. Por outro lado, a vacina contra o coronavírus produzida pela Universidade de Oxford e AstraZeneca estará disponível sem fins lucrativos “a perpetuidade” para países de baixa e média renda através do programa COVAX.

Embora isto possa se tornar um mecanismo global para a compra de vacinas, não garante o acesso equitativo sustentado ou sua relação com o contestado sistema de patentes. Eis dois dados novos que reposicionam a América Latina no debate sobre a soberania sanitária: um, Argentina e México serão os países responsáveis pela fabricação da vacina Oxford-Astra-Zeneca. Segundo, o presidente da Costa Rica, Carlos Alvarado, apoiado por 37 países, promoveu uma proposta dentro da Assembleia Mundial da Saúde para um pool de licenças voluntárias de medicamentos, vacinas e tecnologias para serem livremente compartilhadas.

No momento mais crítico da integração regional, a Argentina e o México poderiam ser pivôs na construção de relações regionais em torno da vacina como um bem público regional, a fim de abordar os desafios de saúde e seus determinantes sociais, políticos e econômicos? A região pode se converter em um ator-chave nesta nova etapa da pandemia na busca de mecanismos para garantir um acesso equitativo?

A Covid-19 como um espelho das dívidas sociais e sanitárias na região

A Covid-19 na América Latina revela e aprofunda os desafios sanitários imediatos em Estados fracos, ou enfraquecidos, com sistemas de saúde frágeis, assim como desafios à médio e longo prazo relacionados ao combate à pobreza e à desigualdade, e iniquidades socioeconômicas e de gênero. Recordemos que a Covid-19 se soma a epidemias como a dengue, cujos casos até agora ultrapassam 1,6 milhões, a maioria no Brasil, Paraguai, Bolívia, Argentina e Colômbia. Além disso, há casos de Chikungunya, Zika e Malária, com a Venezuela liderando o caminho desde 2017.

De fato, as crises sanitárias exacerbam todas as formas de injustiça social manifestadas nas desigualdades no acesso aos serviços de saúde, à educação, acesso à proteção social e justiça de gênero. A CEPAL apelou para a reconstrução de um pacto social regional que, na melhor das hipóteses, promova um modelo de desenvolvimento sustentável e inclusivo e, na pior das hipóteses, mitigue a perda do progresso na luta contra a pobreza e a desigualdade. Esta é uma expressão saudável em um contexto onde, até agora, tem prioriza a saída individual para conter a expansão da Covid na maioria dos países.

Ao contrário da década passada, não há uma força motriz comum”

De fato, a pandemia está se manifestando em uma região que mostra uma incongruência clara entre, por um lado, o aumento dos problemas regionais e fronteiriços e, por outro, a diminuição das respostas concertadas. Ao contrário da década passada, não há uma força motriz comum, mas sim uma retração do regionalismo associada à perda da liderança regional. Além disso, há uma agenda absoluta de minimalismo associado ao comércio, o que explica a ausência de respostas regionais sólidas às crises e, acima de tudo, à Covid-19.

Há também tensão em termos político-ideológicos e diferenças importantes entre os Estados sobre como responder ao contexto geopolítico internacional. Mesmo assim, a corrida por uma vacina contra a Covid também acelerou a corrida pela articulação e acordo sobre o que seria, a rigor, a reconstrução da soberania sanitária.

A vacina como motor de integração? Há um legado

Há uma década, a UNASUL e o Mercosul teriam permitido uma coordenação e cooperação diante da crise sanitária, assim como uma estratégia conjunta para a compra de medicamentos, incluindo vacinas. Basta lembrar das ações comuns no marco da pandemia de influenza H1N1, quando os ministros da saúde se reuniram no Equador e concordaram em empreender ações conjuntas para estabelecer mecanismos de negociação e compra conjunta da vacina, aspectos que assegurariam acesso equitativo, capacidade de produção regional, antivirais e kits de diagnóstico.

Na área de acesso aos medicamentos, por exemplo, foram desenvolvidos projetos como o Banco de Preços de Medicamentos, e tanto a UNASUL quanto o MERCOSUL têm impulsionado a negociação conjunta de preços de medicamentos de alto custo. Inclusive, a nível global, os países da região defenderam os direitos de propriedade intelectual sobre o acesso a medicamentos como um bloco na Assembleia Mundial da Saúde. E nesse contexto, denunciaram o monopólio exercido pelas empresas farmacêuticas, especialmente na definição de preços.

A América Latina conta com muitas experiências e mecanismos para recriar a soberania sanitária através da cooperação. Uma coordenação mais efetiva entre os mecanismos de integração regional poderia permitir a ampliação do intercâmbio de dados epidemiológicos e de vigilância, bem como a adoção de incentivos para a inovação tecnológica. As estratégias de negociação e compra conjunta de vacinas e tratamentos para a Covid-19 também poderiam ser beneficiadas enormemente se os mecanismos pudessem ser desenvolvidos de forma articulada.

A vacina não remove o que o médico e antropólogo Paul Farmer chama de patologias do poder, nem as diferenças político-ideológicas que debilitaram as estruturas regionais como base para estratégias comuns. Tampouco resolve problemas de desvio de comércio, nem é um antídoto para que os governos não repitam as muitas práticas discriminatórias mostradas durante a abordagem da pandemia. Exemplos incluem políticas que excluem refugiados e migrantes indocumentados do acesso a serviços de saúde e sistemas de proteção social.

A vacina é um incentivo comercial, se você quiser. Entretanto, também pode ser um incentivo para estimular um novo pacto social regional baseado em sinergias entre redes de laboratórios e comunidades científicas regionais, bem como uma articulação de esforços públicos e privados que enfatizem: responsabilidade compartilhada pelo acesso universal e equitativo às vacinas como bem público regional, e à saúde como um direito universal.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Foto da Presidência Peru en Foter.com / CC BY-NC-SA

Autor

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Profesora de Política Internacional de la Universidad de Southampton. Doctora en Política y Relaciones Internacionales por la Univ. de Warwick. Máster en Relaciones Internacionales por la Univ. de Miami y FLACSO-Argentina.

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