Quantas vezes no mundo das intrigas pessoais e políticas, disputas por poder, honra e raiva do inimigo, vimos aparecer o veneno como personagem da história.
Nem vamos falar aqui do uso de armas químicas em massa, que fazem parte de legados de guerras que não mais esperamos ver. Uso de gases em campos de concentração como na Alemanha nazista e do napalm na guerra do Vietnã, pelos Estados Unidos. Ou ainda, do gás sarin usado para assassinar covardemente 1.500 civis sendo 1/3 de crianças, que ocorreu no caso do ataque de Ghouta, nos arredores de Damasco, em 2013. Estes, dentre outros casos, são de visível e assumida ação inescrupulosa na tentativa de eliminar aquele visto como inimigo, em situações de guerra. Casos inúmeros que podem ser citados e envolvem envenenamento como arma de guerra, sempre nos parecem ações covardes e desmedidas diante da assimetria de forças ou condições de resistência. Apesar da relevância do tema, estarão fora do foco deste artigo situações de guerra.
Mortes por envenenamento povoam fantasias de segredos, ações ardis e covardes, denúncias e busca de reparo de reputação e dignidade mediante humilhação ou injustiças.
Pensemos em tempos de paz, em que suicídios e assassinatos perpassam narrativas simbólicas que revisitamos na história não comprovada, como a condenação de Sócrates, o suicídio de Cleópatra ou intrigas de Lucrécia Borges. Mortes por envenenamento povoam fantasias de segredos, ações ardis e covardes, denúncias e busca de reparo de reputação e dignidade mediante humilhação ou injustiças.
Da literatura de Shakespeare a Gustave Flaubert. De Hamlet a Romeu e Julieta, interesses e fugas dos infortúnios da vida, como o fez Emma Bovary, dramas povoam algumas das histórias mais lidas e encenadas da literatura clássica. No entanto, histórias reais mais recentes têm competido com a ficção, relevando ao papel de protagonista o personagem do veneno.
O suicídio por envenenamento é tradicional estratégia para se guardar segredos de Estado ou de guerra, evitando o sofrimento da tortura ou o risco da sucumbência à dor, como era o caso das cápsulas de suicídio de agentes secretos na era da guerra fria. A novidade sobre esse tema é a pílula da eutanásia (comprimido drion) para idosos ou doentes terminais, que visa o mesmo fim: encurtar o sofrimento do corpo, seja mediante a tortura pelo inimigo, seja mediante as dores da morte certa.
Em 2017, vimos a cicuta no live streaming do suicídio de Slobodan Praljak. Praljak deu visibilidade ao seu julgamento contra crimes cometidos na guerra da Bósnia, ao procurar demonstrar indignidade mediante sua condenação a 20 anos de prisão pelo Tribunal Internacional de Haia para a antiga Iugoslávia, o TPII. O ex-general bósnio transformou sua morte em um evento do mundo digital, substituiu sua pena pelo brinde ao descontentamento com a justiça internacional.
O veneno é talvez o mais antigo personagem das histórias de intrigas, enganos, ações inescrupulosas a serem guardadas em corpos sacrificados, seja pelos seus próprios donos ou por terceiros que os querem calar.
A operação Lava Jato, deflagrada na América Latina desde 2014, gerou denúncias de corrupção que relacionavam políticos e empresários. Diferentemente do Brasil e do Peru, países onde investigações de corrupção e lavagem de dinheiro envolveram prisões e até mesmo o suicídio do presidente Alan Garcia em 2019, na Colômbia o impacto das acusações não derrubou nenhuma força política. No entanto, relatos de denúncias de envenenamento de testemunhas-chave nas investigações da Lava Jato no país ganharam manchetes internacionais. Em 2018, o ex-auditor Jorge Pizano morreu de parada cardiorrespiratória e Rafael Merchán, ex-secretário de Transparência, se suicidou por cianeto. Quatro dias após a morte de Jorge Pizano, morre ainda seu filho Alejandro, ao ingerir água intoxicada com cianeto de uma garrafa de seu pai. Denúncias sobre uma história incomprovada levaram a um questionamento sobre as reais causas de tantas mortes relacionadas às investigações em curso, que teriam mudado os rumos da política de Bogotá.
Na Rússia, os casos de envenenamento se misturam entre comprovados e não comprovados, antigos e recentes.
Na Rússia, os casos de envenenamento se misturam entre comprovados e não comprovados, antigos e recentes. Ativistas anti-Kremlin, como Vladimir Kara-Murza, com uma longa trajetória de oposição a Putin e Pyortr Verzilov (ligado ao Pussy Riot) tem histórias para contar, como sobreviventes e denunciantes do uso recente do método de intoxicação como forma de calar a contestação.
No meio da Pandemia do COVID-19, em tempos de nos guardarmos em casa pelo temor de uma morte anunciada por um vírus que ainda não conhecemos muito bem, temos acompanhado a mais recente história em que nosso personagem volta à cena. Esta é a segunda vez que Aleksei Navalny sofre tentativa de assassinato por ingestão de veneno.
Não é também a primeira vez, talvez não a última, que se busque intoxicar a palavra de protesto, de contestação, de denúncia. Não será a última vez que um governo que não aceite a alternância e competição de ideias, a incerteza do resultado do jogo, ou ainda, a crítica aos seus erros, não recorra ao envenenamento de todos que possam ameaçar sua permanência. Nem sempre o fazem com uma arma química, detectável pela ciência, mas provavelmente com alguma forma hostil de eliminar o contraponto, o diferente, o potencial substituto de quem não aceita abrir mão do poder.
Na Rússia Czarista, quando não mais era aceito, Rasputin resistiu ao cianureto. Na Inglaterra do Brexit, os Skripal sobreviveram ao novichok. Mas, ainda não se sabe se Nalvany sucumbirá ao mesmo veneno e se tornará mais um personagem de história de uma experiência de poder onde se busca silenciar a palavra, destruindo-se, desde dentro, a possibilidade de uma oposição.
Foto de Xavier P. Garcias em Foter.com / CC BY-NC-SA
Autor
Cientista politico. Professor e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ (atual IESP/UERJ). Pesquisador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) - Núcleo Europa.