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Mulheres, independência e revolução na América Latina: Manuela Sáenz

Na história latino-americana, além dos modelos de esposa e mãe, tradicionalmente o papel das mulheres tem sido invisibilizado ou reduzido a uma posição sentimental, patriótica ou religiosa. Muitas mulheres, figuras destacadas na história da Independência da região, têm sido esquecidas por anos, condenadas ao ostracismo ou desvalorizadas por causa de seu gênero: um dos exemplos mais emblemáticos é o de Manuela Sáenz.

Ela é considerada uma das protagonistas de uma espécie de revolução das mulheres que se desenrolou em meio às revoluções de independência ocorridas em territórios latino-americanos que estavam sob o domínio colonial de países europeus, no início do século XIX.

Trajetórias como a dela evidenciam que os processos de emancipação colonial e de formação nacional abrigaram incontáveis sonhos que foram muito além dos limites traçados pela elite criolla – aquela classe social que intentava, e em grande medida logrou, manter sob seu controle o curso das transformações.

Manuela Sáenz nasceu em 1797 em Quito. Durante a infância, vivenciou a atmosfera rebelde do movimento que em 1809 destituiu o presidente da Real Audiência e formou a primeira Junta Soberana de Governo, rapidamente reprimida. Em 1817, casou-se, cumprindo um destino quase incontornável para mulheres da mesma origem social abastada. Mudou-se para Lima, onde sua atuação junto às forças pró-independência lhe rendeu a condecoração com a ordem de “Caballereza del Sol”, dada por San Martín.

De volta a Quito, em 1822, participou dos preparativos para a Batalha do Pichincha, ocasião em que conheceu Simón Bolívar. Não só amoroso, o laço que se estabeleceu entre eles a partir de então era profundamente político: compartilhavam o sonho de integração dos territórios liberados em uma confederação de estados, a Grã-Colômbia, que fizesse frente aos desafios que as jovens nações latino-americanas enfrentariam no quadro da geopolítica mundial para manutenção de sua independência e soberania.

Ao retornar ao Peru, foi incorporada ao Estado-Maior bolivariano, ficando responsável pelos arquivos da campanha libertadora. Neste período, iniciou sua carreira militar: ingressou no exército como hússar e, em 1824, em virtude da Batalha de Junín se tornou “Capitão”. Em seguida, na Batalha de Ayacucho foi elevada a “Coronel”. Ela encorajou a criação da República da Bolívia, que ocorreu em 1825, e é também possível que tenha estado naquela região colaborando diretamente com o projeto.

Em 1827, sofreu os abalos da destituição dos poderes bolivarianos no Peru, sendo presa e obrigada a deixar o país. Em 1828, transferiu-se para Bogotá, estando ao lado de Bolívar durante o período em que este exerceu diretamente o cargo de presidente da Colômbia. Neste cenário, sua influência política se fez sentir em vários aspectos e se tornaram famosos os episódios em que descobriu e ajudou a frustrar alguns atentados tramados contra a vida do aclamado Libertador, que se enfrentava com grupos de oposição ao regime.

Em 1830, mesmo com a renúncia e o exílio deste, permaneceu na capital colombiana, ajudando a articular uma nova investida sob o poder que o reconduzisse ao governo. Isto, contudo, não aconteceu. A morte de Bolívar no final daquele ano foi um capítulo a mais no desmantelamento dos audaciosos planos de erigir uma “pátria grande”.

Contra Manuela se intensificaram, então, as campanhas difamatórias e a perseguição política. Por fim, em 1834, foi desterrada e após passar um período na Jamaica, sua tentativa de retornar ao Equador foi também embargada, restando-lhe a permanência em uma cidade afastada do litoral peruano, onde morreu em 1856, cercada pela pobreza e pela angústia do isolamento político.

Uma utopia coletiva

A sua trajetória rebelde – embora não a impedisse de cair, vez ou outra, sob as rédeas da repressão moral, da objetificação sexual e da submissão amorosa – exemplifica uma coragem e rebeldia que eram coletivas. Recuperá-la nos ajuda a tornar mais visível a situação de mulheres de distintos grupos étnicos e sociais que, ao envolverem-se na campanha libertadora, desafiaram a hierarquia das relações de gênero que cerceavam a experiência feminina tanto na esfera privada quanto na pública.

Essas mulheres criativamente instrumentalizavam elementos que compunham o sistema de sua própria opressão para atuar na luta e criavam, assim, rotas de fuga. Eram as organizadoras das tertúlias nas quais se articulavam conspirações; abrigavam fugitivos; ajudavam a propagar as novas ideias em suas redes familiares;  atuavam como espiãs e mensageiras, obtendo e transmitindo informações.

Fora do espaço de seus lares, participaram de protestos e colaboraram com a imprensa, dando também contribuições intelectuais ao movimento. Disponibilizaram recursos materiais, sobretudo na forma de sua força de trabalho, para dar suporte aos exércitos libertadores, além de acompanhar ou ingressar diretamente nas tropas quando isto lhes foi possível. Corriam o risco de violentas represálias, como humilhações públicas e agressões sexuais, para além da hostilidade que podiam enfrentar de alguns de seus próprios companheiros de luta.

É como se a revolução, ao sacudir algumas estruturas do velho regime colonial, tivesse liberado forças que não eram inéditas, mas que estavam represadas. A subversão da ordem, embora tenha se pretendido limitada à esfera política, instaurou um período excepcional da vida em sociedade e deu margem para que uma suspensão das normas em outras esferas fosse admitida e, até certo ponto, estimulada.

Quando o caos revolucionário abriu a possibilidade da projeção imaginária de outros mundos, as mulheres não foram simples peças manejadas pelas classes dominantes. Elas sonharam não só com a libertação da pátria, mas também com sua própria libertação, constituindo em grande medida – juntamente com uma população negra e indígena superexplorada – a força depositária da radicalização que buscava transformar a revolução política em revolução social.

Com o encerramento do ciclo revolucionário, a nova ordem estabelecida sob a égide criolla reprimiu e expulsou não só da luta política, como também da memória histórica, as revoluções das mulheres e dos povos negros e indígenas. As mulheres foram pressionadas a readequarem-se aos papéis tradicionais de gênero, sendo reconvertidas na figura coadjuvante e apaziguadora de “mães da pátria”, elaboradas sob medida para expressar amor e sacrifício, mas não tematizar as desigualdades e discriminações de gênero.

Impossível de ser retraduzida nesses termos, Manuela Sáenz entrou para a história inicialmente como uma das mais ilustres amantes de Bolívar e durante muito tempo ocupou o espaço de uma simples anedota nas aventuras românticas do Libertador.

Em sua utopia emancipadora, ela expressa a sutil convergência entre projetos de libertação nacional e de libertação das mulheres, sinalizando para uma das tarefas não concluídas pelos processos de independência na América Latina. Por isso, nos põe diante de movimentos insurgentes que se constituíam mutuamente.

Passados mais de 150 anos, a insurgência feminina que floresceu naquele momento pode ser vista como pioneira de movimentos feministas e de mulheres latino-americanas, representando um precioso legado que deve ser resgatado.

Autor

Investigadora asociada del Centro de Teoría Social y Estudios sobre América Latina (NETSAL). Doctora en Sociología por el Instituto de Estudios Sociales y Políticos de la Universidad del Estado de Río de Janeiro (IESP-UERJ).

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