Em novembro de 2022, a Comissão Nacional de Primárias (CNdP) foi instalada na Venezuela com a missão de organizar uma consulta nacional para escolher o candidato unitário com a intenção de representar os setores de oposição na Eleição Presidencial de 2024. Nas palavras do presidente da CNdP, Jesús María Casal, a missão da organização era resgatar o valor do voto, oferecendo uma oportunidade de coincidir em um “projeto básico comum de democratização”. Essas foram as premissas de um esforço coletivo de organização que convocou setores do partido e da sociedade civil em uma tarefa de dimensões complexas e sob constante ameaça do setor governista.
A tarefa a que se propuseram representou um enorme desafio, não só dadas às limitações materiais e financeiras que enfrentaram para realizar a consulta, mas devido à persistência e ao agravamento das divergências entre as distintas facções da oposição venezuelana. Por um lado, discutiu-se a possibilidade de contar com a assistência técnica do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que seria descartada após o desmantelamento de sua diretoria, uma decisão que foi vista como uma tentativa inútil de atrasar o referendo nacional. O anúncio da Eleição Primária foi, por um lado, um reconhecimento da necessidade de organizar uma plataforma eleitoral unida e, por outro, a urgência de superar as divergências para o benefício comum de alcançar uma proposta política coerente da oposição.
Entretanto, um dos desafios da Eleição Primária como uma convocação social foi justamente a dificuldade de fazer com que todos os atores políticos coincidissem na mesma direção estratégica. Sem dúvida, as diferenças ideológicas seguem ali, mas o esforço foi mais orientado à formação de uma abordagem unida que devolveria a confiança dos venezuelanos na via eleitoral. A isso se soma a incerteza sobre as medidas de desqualificação que pesam não só sobre María Corina Machado, a vencedora da eleição primária, mas sobre outros políticos, como Henrique Capriles Radonski, que se retirou, argumentando a dificuldade de avançar com essa medida contra ele.
Entre o discutido e acordado em Barbados na semana passada, quando a oposição e o partido governista formalizaram seu compromisso de retomar as negociações entre os dois lados, estava o levantamento temporário das sanções econômicas impostas pelos EUA em troca de permitir a participação eleitoral da oposição. O tema das desqualificações não foi resolvido.
Uma vez efetuado o referendo, a oposição passa para outra fase no processo político-eleitoral. Agora, além de manter o entusiasmo que as pesquisas ja adiantavam sobre a participação nas primárias, lutar por condições eleitorais que incluam o levantamento dessas medidas contra María Corina Machado, sobre as quais não há nada firme do ponto de vista das negociações que continuarão em paralelo entre o governo e a Plataforma Unitária.
Nesse sentido, a eleição de Machado como líder da oposição venezuelana apresenta um novo cenário no qual é de se esperar que haja definições, não só em termos estratégicos, mas de representação. Um dos aspectos críticos será a continuidade da atual equipe negociadora da oposição. Não se pode descartar que, após os resultados do referendo, haja mudanças nesse processo, das quais o governo possivelmente se aproveitará para seguir estimulando as fraturas na coalizão opositora, como tem sido sua estratégia.
A vitória de Machado não deixa a dinâmica interna da oposição sem solução, pois outros candidatos que se abstiveram de participar da eleição primária não descartam uma incursão fora da plataforma da oposição em 2024, como é o caso de Manuel Rosales, governador do estado de Zulia. Esse cenário não é improvável, tampouco é o fato de outros fatores da coalizão de oposição, bem como setores politicamente fluidos, como o comediante Benjamín Rausseo, que continua manifestando interesse em participar como candidato independente, decidam lançar suas candidaturas em 2024.
A oposição deverá unificar esforços para manter a base de apoio de Machado como capital político para negociar melhores condições eleitorais que não se limitem à sua qualificação. As condições de participação continuam pendentes, o que inclui o Registro Eleitoral, bem como o voto no exterior, que precisa ser aberto. Isso dependerá dos acordos entre o Governo Maduro e a Plataforma Unitária, já que em alguns países com uma população venezuelana significativa, a Venezuela não tem relações diplomáticas, como é o caso dos EUA.
Finalmente, segundo a Comissão Eleitoral, 2,3 milhões de venezuelanos foram votar em uma eleição primária auto-organizada, enfrentando inúmeros obstáculos: desde a redução de centros de votação, agressão de grupos pró-governo, supressão de informações, até interrupções no acesso à Internet.
Essa experiência deixou claro que, apesar do descontentamento com a classe política, muitos venezuelanos não deixaram de acreditar na democracia e no poder do voto. Apesar das ameaças, as redes sociais e a mídia mostraram um país que saiu em massa para votar pela esperança. Esse entusiasmo e a expressão de um desejo de mudança que dificilmente será tirado dos venezuelanos talvez seja a mensagem mais poderosa dessa jornada cívica.