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A democracia argentina está em perigo?

Desde o conflito de 2008, a violência simbólica começou a aumentar na Argentina. Houve um retorno do confronto que trouxe consigo o surgimento de uma série de expressões destinadas à desqualificação do adversário e exacerbação de divisões (pré)existentes na sociedade argentina. Apareceram termos de capacidade explicativa duvidosa, mas de indubitável eficácia persuasiva, como a categoria de “destituinte” ou metáforas como “a fenda” para descrever conflitos e fraturas que pareciam (e alguns parecem) existir desde tempos imemoriais.

A crise da democracia a nível global

Um dos grandes debates contemporâneos no âmbito internacional está sem dúvida relacionado com a crise da democracia a nível global, bem como ao surgimento de alternativas “iliberais” à democracia. Desta maneira, o avanço até recentemente inevitável e esmagador da democracia liberal em escala mundial tem sido desafiado por novas alternativas competitivas durante as primeiras décadas do século XXI.

Não estaríamos aqui na presença de um desenlace resultante do “Backslading” ou da “Regressão democrática”, nem do clássico “Breakdown” ou “Ruptura” das democracias resultante da proliferação de golpes civis-militares entre a segunda e a terceira onda democrática. Nos encontramos frente a uma lenta erosão da democracia mediante uma série de mudanças que, sob a cobertura dos procedimentos legais, minam a democracia em um processo de crescente autocratização.

Neste marco, um regime político pode ser definido como democrático se cumpre com pelo menos três condições básicas. Primeiro, um processo eleitoral razoavelmente livre, competitivo e transparente. Segundo, um resultado eleitoral que conte com a aceitação ou, pelo menos, a tolerância por parte dos perdedores. E por último, exclui o uso da violência (física ou simbólica) na disputa política.

Como tem se desenvolvido a democracia na Argentina desde 1983?

A democracia argentina tem mostrado amplos sinais de resiliência no decorrer das últimas três décadas, enfrentando crises militares entre 1987 e 1990, econômica em 1989/1990 e institucional e social em 2001/2002. Todas essas provas foram, em alguma medida, superadas de maneira satisfatória. Ao mesmo tempo, um longo ciclo de emergência ocorre de 1989 até hoje com alguns breves interregnos entre 1999-2001 e 2015-2018. A Argentina se encontra (quase) em uma emergência permanente.

O retorno da democracia em 1983 trouxe consigo o surgimento de um conjunto de práticas políticas mais alinhadas com um estilo consensual, mesmo com um processo de instauração do novo regime político caracterizado pela ausência de pactos consociativos entre as elites políticas como os produzidos na Venezuela e Colômbia durante a década de 1950 ou na Espanha durante os anos setenta.

A unidade partidária frente ao levante militar da semana santa em 1987, os acordos que tornaram possível a reforma constitucional de 1994, a experiência de quase coalizão de Eduardo Duhalde e a conformação da Mesa de Diálogo patrocinada pela Igreja Católica no contexto da crise social de 2001/2002 são alguns exemplos emblemáticos de uma maior inclinação ao compromisso, independentemente do juízo de valor que essas iniciativas de “unidade na diversidade” possam merecer.

O conflito entre um novo governo de Cristina Fernández de Kirchner e as organizações agropecuárias nos primeiros meses de 2008 sobre a “Resolução 125” constituiu um ponto de inflexão, na medida em que restabeleceu uma dinâmica de confronto praticamente abandonada desde o retorno da democracia em 1983.

Qual foi o impacto do conflito de 2008 com o setor agropecuário?

Retornando à definição de democracia e seus atributos básicos, o processo eleitoral na Argentina é razoavelmente livre, transparente e competitivo, dando origem, nos últimos anos, a uma competição entre as duas principais coalizões eleitorais, Juntos por el Cambio e Frente de Todos.

Este cenário, que se desenvolve a nível nacional, convive com a persistência de regimes sultanistas ou oligárquico-competitivos no âmbito subnacional com escassa ou nula alternância ou possibilidade de rotação efetiva das elites políticas. A designação de figuras polêmicas como a do juiz Alejo Ramos Padilla para a Justiça Eleitoral da província de Buenos Aires tem despertado preocupações entre os setores da oposição com respeito às garantias necessárias do processo eleitoral e seus resultados.

Os resultados eleitorais contam com a aceitação ou, pelo menos, a tolerância dos perdedores, embora tenham sido observadas algumas situações que merecem atenção especial. A ausência da ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner na cerimônia de posse presidencial de Mauricio Macri foi lida como um gesto de desconhecimento da legitimidade do resultado eleitoral de 2015. E as denúncias feitas no espaço da então Unidad Ciudadana nas eleições legislativas de 2017 representam um sinal de advertência sobre a quebra do consenso sobre a tolerância em relação a um resultado eleitoral desfavorável.

Apesar destes antecedentes, a exclusão do uso da violência política, assim como a existência de um consenso em torno da necessidade da resolução pacífica da disputa política, têm sido características a destacar desde 10 de dezembro de 1983. Entretanto, o aumento da violência discursiva representa uma ameaça ao consenso que existe desde 1983.

Que futuro esperar para a democracia argentina?

Enfrentamos um futuro incerto. Sem o perigo de regressão democrática ou colapso institucional, mas com um certo risco de autocratização, existe hoje na Argentina um contexto eleitoral com um enfraquecimento das garantias de transparência e imparcialidade, uma diminuição da tolerância em relação aos resultados eleitorais adversos, um enfraquecimento do consenso acerca da exclusão da violência como recurso (por enquanto apenas no plano simbólico) e o retorno das “fantasias priistas” no partido no poder.

Estes elementos representam indícios de um cenário complexo para o desenvolvimento da democracia argentina. No entanto, nosso compromisso é manter o pessimismo da inteligência, mas ao mesmo tempo, um otimismo da vontade.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Foto de Ryan Poole en Foter.com

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Cientista político. Profesor asociado de la Univeridad de Buenos Aires (UBA). Doctor en América Latina Contemporánea por el Instituto Universitario de Investigación Ortega y Gasset (España).

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