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A mentira organizada e as chaves do golpismo bolsonarista

Assim como ocorreu com o fracassado golpe trumpista de 6 de janeiro de 2021, no Brasil as mentiras manufaturadas a partir de cima foram incrivelmente acreditadas e motivaram ações a partir de baixo. Para líderes como Jair Bolsonaro ou Donald Trump, a política é parte do que a filósofa Hannah Arendt chamou de “mentira organizada”. Neste contexto, os políticos utilizam “a falsidade deliberada como arma contra a verdade”. Neste mundo revisionista, as visões mais irracionais, messiânicas e paranoicas são falsamente apresentadas como história e presente, e motivam as ações mais extremistas, como o falido e patético golpe de Estado de 8 de janeiro. 

Os ataques contra o passado institucional e as mentiras contínuas sobre eles constituem o modelo de um futuro antidemocrático, mas também um guia de terrorismo para o presente. Estas mentiras não são diretrizes concretas, mas mandatos e premissas ideológicas que fomentam a ação antidemocrática.

A violenta ocupação dos edifícios dos três poderes do Estado no Brasil em 8 de janeiro nos deixa ao menos cinco lições históricas iniciais para entender a morfologia da mentira armada que motivou as ações golpistas.

Comecemos por uma primeira lição, que é a do vocabulário apropriado para entender o que aconteceu. Usemos as palavras corretas: tentativa de golpe de Estado, ataque contra a democracia, terrorismo, grupos fascistas, objetivo fascista de destruir a democracia. Diante desses acontecimentos, é necessário eventos, é necessário reprimir com toda força legal e fazer com que seus responsáveis práticos e ideológicos paguem com toda a força da lei.

Palavras e conceitos errôneos: protestos, manifestantes e a ideia de dois campos extremistas em luta. Esta última versão da ideia de pensar sempre que todo assunto político tem duas posturas legítimas leva a diminuição da gravidade dos acontecimentos. Em termos concretos, o Brasil viveu um ataque contra a democracia por parte de setores bolsonaristas que não reconhecem seu funcionamento. Portanto, no Brasil continua havendo, por um lado, um conflito entre setores carentes de legitimidade, devido a suas posições antidemocráticas, e, por outro, um arco político democrático (esquerda, centro e direita) que inclui, e que em certa medida é liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Por outro lado, para entender o que aconteceu, não devemos esquecer uma chave central da história do fascismo: sua repressão legal é necessária quando tenta destruir a democracia. Esta é a segunda lição. Seus atos criminosos de terrorismo contra as instituições democráticas devem ser detidos com plena força legal antes que seja tarde demais. Isto é o que deveria ter acontecido desde o momento em que estes setores extremistas, a vanguarda fascista do populismo bolsonarista, se amontoaram em Brasília para exigir algo constitucionalmente irreclamável: desconhecer os resultados das eleições e restituir, por aclamação ditatorial, o presidente cessante.

Outra lição chave da história do fascismo e também do golpe trumpista de 6 de janeiro é que a responsabilidade dos líderes não pode ser ignorada ou minimizada. A responsabilidade ideológica de Bolsonaro é clara, assim como a de Donald Trump, ou de Benito Mussolini por ter sido o instigador ideológico do assassinato do principal líder da oposição em 1924. O deputado socialista Giacomo Matteotti foi assassinado depois de denunciar a ilegalidade e a violência fascista por um bando de capangas com vínculos comprovados com o governo de Mussolini.

O ditador reconheceu sua “responsabilidade política, moral e histórica”, mas seguiu governando como se nada tivesse acontecido. Apesar de uma minicrise e de uma rejeição ampla que, eventualmente, se mostrou passageira, o fato de Mussolini não pagar nenhum preço por suas ações abriu o caminho do fascismo para uma ditadura plena. Ou, dito de outra forma, o totalitarismo fascista ficou totalmente arraigado quando seus crimes não tiveram consequências.

Uma quarta lição se relaciona com a distorção do passado e do presente. Como Mussolini, Bolsonaro, cujas mentiras sobre a epidemia e as vacinas contra a COVID-19 ajudaram a normalizar, e até impulsionar a morte e a doença em seu país, fez da propaganda e do mito a forma predominante de política.

E, atualmente, o mesmo mecanismo está sendo utilizado para distorcer a realidade dos últimos acontecimentos. Já se fala de “infiltrados” ou de responsabilidades similares da esquerda e estas mentiras descaradas são articuladas por Steve Bannon nos Estados Unidos e por outros líderes populistas de extrema-direita, como o argentino Javier Milei. Milei não denunciou o golpe de Estado como tal e se baseou em uma declaração do Foro Madrid que, de forma amorfa, “condena da maneira mais categórica a violência exercida por aqueles que invadiram o Palácio do Planalto”, mas sobretudo denuncia os que denunciaram a violência e enfatiza o que é  “dupla moral” da esquerda e do progressismo.

Esta entidade é uma iniciativa da fundação Disenso, presidida pelo líder pós-fascista Santiago Abascal de Vox, e cuja “Carta de Madri” foi assinada em 2020 por Milei, Eduardo Bolsonaro, Giorgia Meloni (primeira-ministra da Itália) e o candidato fracassado à presidência do Chile e admirador do ditador Augusto Pinochet, José Antonio Kast.

É notável como estes personagens insistem em suas fantasias e mentiras. Como seus ídolos Trump e Bolsonaro, estes políticos populistas de extrema-direita mentem constantemente sobre democracias e ditaduras, e representam de diferentes formas alguns perigos para a democracia.

Uma última e quinta lição é como tais mentiras geram eventos cuja projeção é global. Da mesma forma que a ditadura de Mussolini na década de 1920 influenciou o caminho de Hitler na década seguinte, o golpe trumpista marcou o bolsonarismo. De fato, no dia seguinte à invasão do Capitólio, Bolsonaro ameaçou que o Brasil iria “ter um problema pior” se não mudasse seus sistemas eleitorais, ou seja, se perdesse as eleições.

Agora, após negar qualquer participação na invasão dos três poderes, Bolsonaro postou em sua conta do Facebook um texto dizendo que Lula não foi eleito pelo povo, mas pelos tribunais de justiça. Se Bolsonaro não for responsabilizado por sua instigação contínua a crimes contra a democracia, ações semelhantes serão vistas novamente.

Esta forma de operar a mentira para substituir a realidade motivou os trumpistas a invadir o Congresso e segue motivando as fantasias conspiratórias do extremismo norte-americano. A semelhança entre ambas ações e facções é um produto de influências mútuas e ideológicas compartilhadas. Em ambos os casos, o fascismo está bem próximo.

Autor

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Profesor de Historia de New School for Social Research (Nueva York). Fue profesor en Brown University. Doctor por Cornell Univ. Autor de varios libros sobre fascismo, populismo, dictaduras y el Holocausto. Su último libro es "Brief History of Fascist Lies" (2020).

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