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Todo o Governo ao empresariado?

Seja por legado da filosofia grega clássica ou por influência do pensamento católico agostiniano que separava a esfera privada comercial (orientada pelo lucro) das decisões coletivas para o bem comum, muitos de nós nos acostumamos a dissociar o poder político e as definições públicas das influências do mercado. Essa separação poderia ter sentido na época dos grandes impérios, da construção do Estado nacional e dos processos de independência contestadores do colonialismo próprios do século XX, quando as autoridades contavam com recursos, capacidades e legitimidade para surgir como a fonte quase exclusiva do bem-estar nacional. Mas hoje em dia, quando corporações como Apple, Microsoft ou Amazon têm, cada uma, um valor de mercado superior ao PIB brasileiro, russo, canadense ou espanhol – todos, países do seleto e rico G20 –, é difícil defender essa divisão, assim como isentar a vanguarda empresarial de um papel mais determinante do que a produção de bens.

A crescente atribuição de capacidades e responsabilidades às grandes empresas pelo destino das sociedades onde atuam e suas derivações ambientais, climáticas, éticas e sociais é parte de um processo de reconhecimento paulatino do poder e competência das corporações. Estas potencialidades não refletem apenas uma situação de paridade ou mesmo superioridade com instituições políticas convencionais para gerar e distribuir impactos onde operam. Também retratam a percepção de incapacidade ou desinteresse do poder público tradicional (Governo, instituições do Estado, partidos ou Parlamento) para administrar problemas para os quais os agentes do mercado (similar aos outros, como a sociedade civil organizada) se projetam como muito mais capacitados para dar respostas satisfatórias.

Isto explica a crescente expectativa dos cidadãos por um comportamento empresarial social e ambientalmente responsável. Um estudo da consultoria Market Analysis, junto com a rede mundial de pesquisadores independentes WIN, que entrevistou mais de 33.230 pessoas em 39 países, revela que sete em cada dez adultos do mundo consideram extremamente ou muito importante estar conscientes e informados sobre as ações de governança socioambiental que as grandes empresas executam.

Nos principais países da América Latina, como Brasil, México e Argentina, esta proporção chega a 80% ou mais. Embora em menor grau, chilenos e colombianos também superam a média global em hierarquizar o conhecimento sobre a atuação corporativa em matéria de sustentabilidade. Mas a importância da conscientização vai além de especulações em abstrato: pouco mais de 6 em cada 10 adultos em todo o mundo admitem que o comportamento socioambiental corporativo molda suas preferências de compra ou adesão à marca.

Votar com o livro de bolso elegendo os ofertantes de produtos e serviços (empresas) com melhores credenciais éticas e sustentáveis é conhecido como “consumo político” e poderia ser uma força transformadora capaz de estender a ação cidadã além das esferas formais das urnas, da militância partidária ou do protesto de rua. Isso ocorreria porque o poder e a capacidade de influência social e ambiental das corporações exige influenciá-las onde – de fato – é possível moldar seu comportamento: sua saúde financeira, sua participação de mercado, sua reputação entre os consumidores e outros stakeholders.

O favorecimento de empresas com governança cidadã que respeitam o meio ambiente em vez de envenená-lo, ou que ampliam os direitos de seus funcionários e compartilham benefícios econômicos entre fornecedores, sobre os que ignoram as boas práticas socioambientais, contribui para construir uma sociedade mais humana, aberta e inclusiva.

Por que, então, esta nova forma de ativismo e construção de uma agenda progressista não se materializa ao impulsionar uma nova ordem social que estenda a boa governança de forma mais massiva? O estudo Market Analysis/WIN também revela as suspeitas que rodeiam os agentes com poder, políticos e empresariais, na região, estimulando a paralisia onde poderia haver oportunidades de mobilização progressista.

Nos 39 países pesquisados, apenas uma em cada cinco pessoas acredita que a maioria das empresas opera seriamente com responsabilidade social e sustentabilidade. Outros 40% acreditam – ao contrário – que, em sua maioria, as empresas buscam demonstrar uma governança; em resumo, puro marketing. Na América Latina, excluindo o Brasil que, além de ter uma estrutura empresarial mais complexa, tem uma tradição de debates fortes e visíveis dedicadas à propagação e reconhecimento da chamada cidadania corporativa e dos princípios ESG (de governança socioambiental), apenas 10% confiam nos compromissos sustentáveis do mundo empresarial (metade da média global).

O cenário atual que combina fortes expectativas de compromisso corporativo com o bem comum por parte dos cidadãos, somado à sua disposição para premiar ou castigar empresas em função de seu desempenho socioambiental e baixa credibilidade no comportamento altruísta e pró-social das empresas, representa um verdadeiro desafio. Por um lado, esta combinação redefine e consolida quem são os novos jogadores de peso frente aos desafios que nossos países enfrentam, materializando uma mudança nas expectativas de que os problemas importantes serão dirigidos para as empresas no lugar de concentrar toda a fé nas instituições tradicionais da política e do Estado. Por outro lado, esta situação gera um fluxo de pressão e demanda, cuja canalização se frustra diante a incredulidade sobre as verdadeiras intenções corporativas. A possibilidade de que a atuação empresarial seja vista como oportunista ao invés de genuína, bem como as frustrações com o sistema político formal –, podem abrir a porta para expressões radicalizadas ou anti-sistêmicas. A descrença na possibilidade de concretizar avanços progressistas também pelas vias do mercado diante de Estados falidos ou Governos paralisados como os que caracterizam nossa região, junto com os comportamentos corporativos que alimentam ou justificam esta percepção, poderiam frustrar a proposta de um modelo duradouro de desenvolvimento responsável.

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Fabián Echegaray es director de Market Analysis, consultora de opinión pública con sede en Brasil, y actual presidente de WAPOR Latinoamérica, capítulo regional de la asociación mundial de estudios de opinión pública: www.waporlatinoamerica.org.

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