Uma região, todas as vozes

L21

|

|

Leer en

O que Catar 2022 nos disse sobre a democracia global?

O mundial no Catar tem sido marcado por polêmicas. Desde a controversa adjudicação do emirado como sede, passando pelas condições de vida e trabalho dos milhares de trabalhadores migrantes, até as ameaças aos jogadores no caso de participarem de alguma manifestação. Estas marcas no maior evento de futebol interpelam a aceitação da prática autoritária. 

A equipe de Diálogo Político refletiu com atenção sobre isso com sua rede de autores latino-americanos. É com esse espírito que esta análise especial oferece visões diversas sobre um evento que talvez fique na memória como o Mundial de protestos silenciosos e silenciados.

Cartão vermelho para a FIFA

O Qatar, quase contraditoriamente, quis demonstrar que a liberdade  dos que gritam gol é possível no país das proibições. Na verdade, a FIFA comprou esta ideia: um lugar exótico do Oriente Médio como sede do evento mais importante do planeta, por que não? Havia muitas razões pelas quais essa opção era uma má ideia e agora são mais evidentes: sanções à diversidade, restrições à liberdade de expressão, tutela masculina das mulheres e um sistema laboral polêmico sustentado principalmente por imigrantes. Não esqueçamos a opacidade e as denúncias de corrupção.

Felizmente, atenção global não foi apenas focada na bola rolando pelo campo, mas também no alto custo desses minutos de jogo além da paixão futebolística. Mas, é claro, não é suficiente. Embora a FIFA diga o contrário.

O protesto diferente

Na manifestação esportiva mais globalizada, a seleção do Irã comoveu ao se negar a cantar o hino nacional de seu país antes de disputar a partida contra a Inglaterra, que perdeu por 6 a 2. Um gesto de reconhecimento silencioso dos protestos em Teerã pela morte da jovem curda Mahsa Amini, sob custódia policial por, supostamente, não respeitar a indumentária obrigatória das mulheres que o regime de ayatollah Ruhollah Khomeini impõe. A denúncia mais eficaz e heroica contra a barbárie converteu a goleada no campo em uma grande vitória moral na arena do Catar.

Globalização e legitimação

Os Mundiais de futebol sempre foram espaços de legitimação política. Muitas vezes, nações emergentes, periféricas e deslocadas buscam um assento de reconhecimento através do êxito organizacional e esportivo. Não é mais o fascismo ou a Guerra Fria, mas o mundo do capitalismo pós-moderno.

Enchemos de conteúdo e significado estas disputas que, na realidade, são atravessadas pelo marketing, a globalização do espetáculo e a deslocalização do jogo. A esmagadora maioria dos jogadores, mesmo os do Sul global, são desenvolvidos por clubes transnacionais das ligas espanhola, inglesa, alemã, italiana ou francesa. O status de dono do clube diz mais sobre uma posição dominante na escala global, que no final tenta padronizar-se em valores que não são os democráticos, mas os do marketing.

Quando o presidente da FIFA, Gianni Infantino, disse que se sentia como “catari, mulher, trabalhador imigrante, africano, gay”, ele foi eloquente: ser tudo sem ser nada é, talvez, a expressão mais completa do nosso tempo.

O futebol como motivo

Em 1952, Alan Turing foi condenado por homossexualidade e castrado quimicamente sob a lei inglesa. Em 1958, em Bruxelas, a atual capital da UE, aconteceu a Exposição Internacional e Universal e ali se apresentou o último de vários zoológicos humanos que eram comuns na Europa até bem no século XX para mostrar pessoas “exóticas”. E até 1956, a segregação racial era vigente de maneira legal nos Estados Unidos, onde “cidadãos de segunda classe” recebiam um tratamento injustamente desigual, apenas pela cor de sua pele.

Perseguição e castigo por causa da identidade sexual; tratamento degradante e humilhante a quem nascia e lugares desconhecidos; segregação pela cor da pele. Visto em perspectiva histórica, os marcos morais que os cidadãos do Ocidente moderno viviam ainda na segunda metade do século XX são abomináveis e profundamente contrários aos direitos humanos.

As normas morais mudam lentamente e só através do diálogo e da reflexão conjunta – e não da imposição – que as sociedades ocidentais transformaram seus valores; e a partir daí reconhecem e protegem os direitos fundamentais dos seres humanos. Chegar até aqui requereu tolerância e diálogo. Se o Ocidente quer acompanhar os cidadãos cataris em seu caminho para a construção de uma sociedade com mais direitos, então deve-se aproveitar todas as oportunidades – longe de boicotes ou ameaças – para cimentar as bases de um diálogo plural, aberto e livre. A Copa do Mundo é uma dessas oportunidades.

Cuidar da redonda

Depois de Itália 1934 e Argentina 1978, Catar 2022 é o terceiro Mundial organizado em um país ditatorial. Não contando Rússia (2018), onde são celebradas eleições periódicas, mas longe dos padrões internacionais de transparência, pluralismo e competição legítima.

Este é um evento histórico que expõe a distância entre o futebol e a democracia. O que rege o a bola são os números, os lucros, o negócio. É claro que, desde que não produzam rentabilidade exorbitante, a liberdade de expressão, os direitos das mulheres e a diversidade sexual não são prioridades para a FIFA. 

Deixa-se passar uma oportunidade incrível para fazer pedagogia a partir do esporte mais popular do planeta. Não tenho dúvidas de que, assim como os grandes autoritarismos usaram o futebol como máquina de propaganda de seus regimes, os sistemas abertos devem associar o futebol a valores nobres como liberdade e igualdade. Ou seja: cuidar do futebol, não o manchar.

Defesa da democracia e do pluralismo

Esta Copa do Mundo reuniu os grandes debates do nosso tempo. Desde o abuso dos direitos humanos dos trabalhadores contratados para as obras do Mundial, a proibição da braçadeira One Love, até o assassinato brutal de Mahsa Amini e os protestos das mulheres iranianas. Com o Mundial como pano de fundo, temos uma tela dividida onde através do esporte vemos a ausência de liberdades sofridas por alguns, enquanto outros aproveitam para expressar sua solidariedade com causas políticas.

“A bola não se mancha”.

Catar não nos diz nada sobre a defesa da democracia e do pluralismo. Anexar intenção política à competição global de futebol ou usar as seleções nacionais e seus jogadores para passar mensagens políticas é um erro. Atenta contra o espírito do jogo.

Estou de acordo com a FIFA quando proíbe qualquer slogan político ou de protesto usando a tela que proporciona o jogo durante pouco mais de 90 minutos. O grande Diego Armando Maradona já havia dito isso diante de uma Bombonera lotada, em uma de suas muitas tentativas de se tornar novamente o dez do Boca. Disse: “A bola não se mancha”. E com cinco palavras ele resumiu o que o futebol deveria ser, um jogo, um simples jogo.

Democracia, pluralismo, respeito aos direitos humanos, às minorias e todos os etcéteras não é coisa do futebol. Não tem nada a ver com isso. É algo da política.

A transparência imprescindível

A transparência é inimiga das autocracias. Qualquer tipo de informação que não passe pelo controle e eventual censura do governo torna-se uma ameaça. Especialmente se o país busca manter uma imagem amigável e positiva no cenário internacional apesar de dentro de suas fronteiras os direitos mais fundamentais não serem respeitados. O problema para estes Estados surge quando a visibilidade é enorme, pois perdem o controle sobre o fluxo de informações. E este é o caso quando se celebra uma Copa do Mundo como a do Catar. 

Algumas vozes consideraram um erro entregar a organização a um país onde não existe o Estado de direito, chegando inclusive a promover um boicote ao torneio. Entretanto, como a representante da Transparência Internacional, Sylvia Schenk, explicou na televisão alemã, a visibilidade inerente a uma Copa do Mundo pode obrigar o Catar a melhorar as condições de vida de seus habitantes, assim como aumentar o respeito aos direitos humanos. Uma postura que poucos compartilham, mas que guarda uma quota importante de realismo e otimismo. Talvez este evento esportivo seja o ponto de partida.

Insustentável

O Catar sugere uma bolha removida da realidade de tantos. O povo da Ucrânia enfrenta um inverno terrível. Milhões de migrantes sobem em barcaças para se afogar no Mare Nostrum e a mudança climática faz-se notar cada vez mais com eventos extremos. Em contraste, o Catar utiliza estádios climatizados, sistemas de transporte que muitos países desejariam e exibe um luxo sem igual com total falta de pudor e celebrado por jornalistas em prol de uma nota exclusiva.

Talvez alguém calcule a pegada de carbono desta Copa do Mundo. Talvez alguém reflita sobre seus custos energéticos e, portanto, climáticos. No domingo, a festa terminou e, com ela, o sonho de Copa de muitos. Persistirão as consequências e talvez alguém nos pergunte em algum momento o que estávamos pensando quando gritávamos gol e admirávamos palácios construídos sobre poços de petróleo. Definitivamente, insustentável.

*Texto originalmente publicado em Diálogo Político

Autor

Diálogo Político es una Plataforma para el diálogo democrático entre los influenciadores políticos sobre América Latina. Ventana de difusión de la Fundación Konrad Adenauer en América Latina.

spot_img

Postagens relacionadas

Você quer colaborar com L21?

Acreditamos no livre fluxo de informações

Republicar nossos artigos gratuitamente, impressos ou digitalmente, sob a licença Creative Commons.

Marcado em:

COMPARTILHE
ESTE ARTIGO

Mais artigos relacionados